Capítulo V - Classificar; tópico IV. O caráter
A estrutura é essa designação do visível que, por uma espécie de triagem pré-Iínguística, permite a ele transcrever-se na linguagem.
Mas a descrição assim obtida não é mais que um modo de nome próprio:
- deixa a cada ser sua individualidade estrita
- e não enuncia
- nem o quadro a que ele pertence,
- nem a vizinhança que o cerca,
- nem o lugar que ocupa.
Ela é pura e simples designação.
E, para que a história natural se torne linguagem, é preciso que a descrição se torne “nome comum”.
Viu-se como, na linguagem espontânea, as primeiras designações que concerniam a representações singulares, após terem assumido sua origem na linguagem de ação e nas raízes primitivas, adquiriram, pouco a pouco, por força da derivação, valores mais gerais.
A história natural, porém, é uma língua bem-feita:
- não deve aceitar a imposição da derivação e de sua figura;
- não deve dar crédito a nenhuma etimologia(15).
É preciso que ela reúna em uma única e mesma operação o que a linguagem de todos os dias mantém separado: deve, a um tempo,
- designar muito precisamente todos os seres naturais
- e situá-los ao mesmo tempo num sistema de identidades e de diferenças que os aproxima e os distingue dos outros.
A história natural deve assegurar, num só movimento, uma designação certa e uma derivação controlada.
E, como a teoria da estrutura superpunha uma à outra a articulação e a proposição,
do mesmo modo a teoria do caráter deve identificar os valores designativos e o espaço onde ocorre a sua derivação.
“Conhecer as plantas”, diz Tournefort, “é saber precisamente os nomes que se lhes deu em relação à estrutura de algumas de suas partes… A idéia do caráter, que distingue essencialmente as plantas umas das outras, deve ser invariavelmente unida ao nome de cada planta.”(16)
O estabelecimento do caráter é ao mesmo tempo fácil e difícil.
- Fácil, porque a história natural não tem de estabelecer um sistema de nomes a partir de representações difíceis de analisar, mas sim de fundá-Io sobre uma linguagem que já se desenrolou na descrição. Nomear-se-á não a partir do que se vê mas a partir dos elementos que a estrutura já fez passar para o interior do discurso. Trata-se de construir uma linguagem segunda a partir dessa linguagem primeira, mas certa e universal.
- Logo, porém, aparece uma dificuldade maior. Para estabelecer as identidades e as diferenças entre todos os seres naturais, seria preciso ter em conta cada traço que pôde ser mencionado numa descrição. Tarefa infinita que recuaria o advento da história natural para um longínquo inacessível, se não existissem técnicas para contornar a dificuldade e limitar o trabalho de comparação.
Pode-se, a priori, constatar que essas técnicas são de dois tipos.
- Ou se fazem comparações totais, mas no interior de grupos empiricamente constituídos, onde o número de semelhanças é manifestamente tão elevado que a enumeração das diferenças não demorará a perfazer-se e assim, pouco a pouco, o estabelecimento das identidades e das distinções poderá ser assegurado.
- Ou então se escolhe um conjunto finito e relativamente limitado de traços, dos quais se estudarão, em todos os indivíduos que se apresentarem, as constâncias e as variações.
Este último procedimento é o que se denominou Sistema.
O outro, Método.
Eles se opõem como se opõe Lineu a Buffon, a Adanson, a Antoine-Laurent de Jussieu. Como se opõe uma concepção rígida e clara da natureza à percepção fina e imediata de seus parentescos. Como se opõe a ideia de uma natureza imóvel à de uma continuidade fervilhante dos seres que se comunicam entre si, se confundem e talvez se transformem uns nos outros…
Contudo, o essencial não está nesse conflito das grandes intuições da natureza. Está antes na rede de necessidade que nesse ponto tornou possível e indispensável a escolha entre duas maneiras de constituir a história natural como uma língua. Todo o resto não passa de consequência lógica e inevitável.
O Sistema delimita, entre os elementos que sua descrição justapõe com minúcia, tais ou quais dentre eles. Eles definem a estrutura privilegiada e na verdade exclusiva, a propósito da qual se estudará o conjunto das identidades e das diferenças. Toda diferença que não recair sobre um desses elementos será reputada indiferente. Se, como o faz Lineu, se escolhem por nota característica “todas as partes diferentes da frutificação”(17), uma diferença de folha, ou de caule, ou de raiz, ou de pecíolo deverá ser sistematicamente negligenciada. Do mesmo modo, toda identidade que não for aquela de um desses elementos não terá valor para a definição do caráter.
Em contrapartida, quando, em dois indivíduos, esses elementos são semelhantes, eles recebem uma denominação comum.
A estrutura escolhida para ser o lugar das identidades e das diferenças pertinentes é o que se denomina caráter(7):
Segundo Lineu, o caráter se comporá da “mais cuidadosa descrição da frutificação da primeira espécie. Todas as outras espécies do gênero são comparadas à primeira, banindo-se todas as notas discordantes; enfim, após esse trabalho, o caráter se produz”(18).
O sistema é arbitrário em seu ponto de partida, pois que negligencia, de maneira regulada, toda diferença e toda identidade que não recai sobre a estrutura privilegiada.
Mas nada impede, de direito, que se possa um dia descobrir, através dessa técnica, um sistema que seria natural;
- a todas as diferenças no caráter corresponderiam as diferenças de mesmo valor na estrutura geral da planta;
- e, inversamente, todos os indivíduos ou todas as espécies reunidas sob um caráter comum teriam realmente, em cada uma de suas partes, a mesma relação de semelhança.
Mas só se pode aceder ao sistema natural, após se ter estabelecido com certeza um sistema artificial, ao menos em certos domínios do mundo vegetal ou animal.
Eis por que Lineu não busca estabelecer de imediato um sistema natural “antes de ser perfeitamente conhecido tudo o que é pertinente”(19) para seu sistema.
Por certo, o método natural constitui “o primeiro e último desejo dos botânicos” e todos os seus “fragmentos devem ser buscados com o maior cuidado”(20), como fez o próprio Lineu nas suas Classes Plantarum; mas, na falta desse método natural ainda por vir em sua forma certa e acabada “os sistemas artificiais são absolutamente necessários”(21).
Ademais, o sistema é relativo: pode funcionar com a precisão que se deseje.
- Se o caráter escolhido é formado de uma estrutura ampla, com um número elevado de variáveis, as diferenças aparecerão muito breve, desde que se passe de um indivíduo a outro, mesmo quando lhe for totalmente vizinho: o caráter está então muito próximo da pura e simples descrição(22).
- Se, ao contrário, a estrutura privilegiada é estreita e comporta poucas variáveis, as diferenças serão raras e os indivíduos serão agrupados em massas compactas.
Escolher-se-á o caráter em função da finura da classificação que se quer obter.
Para fundar os gêneros, Tournefort escolheu como caráter a combinação entre a flor e o fruto. Não como Césalpin, por serem as partes mais úteis da planta, mas porque permitiam uma combinatória que era numericamente satisfatória: os elementos tomados de empréstimo às três outras partes (raízes, caules e folhas) eram, com efeito, ou demasiado numerosos, se tratados em conjunto, ou demasiado pouco numerosos, se considerados separadamente(23).
Lineu calculou que os 38 órgãos da geração, comportando cada qual as quatro variáveis do número, da figura, da situação e da proposição, autorizavam 5.576 configurações suficientes para definir os gêneros(24).
Se se quer obter grupos mais numerosos que os gêneros, é preciso apelar para caracteres mais restritos (“caracteres factícios convencionados entre os botânicos”) como, por exemplo, só os estames ou só o pistilo: poder-se-ão assim distinguir as classes ou as ordens(25).
Assim, o domínio inteiro do reino vegetal ou animal poderá ser quadriculado. Cada grupo poderá receber um nome. De sorte que uma espécie, sem precisar ser descrita, poderá ser designada com a maior precisão pelos nomes dos diferentes conjuntos nos quais se encaixa. Seu nome completo atravessa toda a rede dos caracteres, que se estabelece até as classes mais elevadas.
Porém, como observa Lineu, esse nome, por comodidade, deve ficar em parte “silencioso” (não se nomeiam a classe e a ordem), mas a outra parte deve ser “sonora”: é preciso nomear o gênero, a espécie e a variedade(26). A planta, assim reconhecida no seu caráter essencial e designada a partir dele, enunciará, ao mesmo tempo que aquilo que a designa com precisão, o parentesco que a liga às que se lhe assemelham e pertencem ao mesmo gênero (portanto, à mesma família e à mesma ordem). Ela terá recebido, a um só tempo, seu nome próprio e toda a série (manifesta ou oculta) dos nomes comuns nos quais se aloja.
“O nome genérico é, por assim dizer, a moeda de bom quilate de nossa república botânica.”(27) A história natural terá cumprido a sua tarefa fundamental que é “a disposição e a denominação”(28).
O Método é uma outra técnica para resolver o mesmo problema. Em vez de recortar na totalidade descrita os elementos – raros ou numerosos – que servirão de caracteres o método consiste em deduzi-Ios progressivamente. Deduzir deve ser aqui tomado no sentido de subtrair.
- Parte-se – é o que faz Adanson no exame das plantas do Senegal(29) – de uma espécie arbitrariamente escolhida ou dada de início num encontro casual.
- Faz-se a sua descrição completa, parte por parte e fixando todos os valores que nela tomaram as variáveis.
- Recomeça-se esse trabalho para a espécie seguinte, dada ela também pelo arbitrário da representação; a descrição deve ser tão completa quanto a primeira, apenas com a diferença de ‘ que nada do que tenha sido mencionado na descrição primeira deve ser repetido na segunda. Só são mencionadas as diferenças.
- Assim para a terceira em relação às duas outras, e isso indefinidamente.
De sorte que, no fim das contas, todos os traços diferentes de todos os vegetais terão sido mencionados uma vez, mas nunca mais do que uma vez. E, agrupando em torno das primeiras descrições as que foram feitas em seguida e que se rarefazem na medida em que se progride, vê-se delinear, através do caos primitivo, o quadro geral dos parentescos.
O caráter que distingue cada espécie ou cada gênero é o único traço mencionado sobre o fundo das identidades silenciosas. De fato, semelhante técnica seria sem dúvida a mais segura, mas o número de espécies existentes é tal que não seria possível chegar ao termo.
Entretanto, o exame das espécies encontradas revela a existência de grandes “famílias”, isto é, de amplos grupos nos quais as espécies e os gêneros têm um número considerável de identidades. E tão considerável que eles se assinalam por traços muito numerosos, mesmo para o olhar menos analítico; a semelhança entre todas as espécies de Ranúnculos, ou entre as espécies de Acônitos, aparece imediatamente aos sentidos.
Neste ponto, para que a tarefa não seja infinita, é preciso inverter o processo. Admitem-se as grandes famílias que são evidentemente reconhecidas e cujas primeiras descrições definiram, como que às cegas, os traços gerais. São esses traços comuns que se estabelecem agora de maneira positiva; depois, cada vez que se encontrar um gênero ou uma espécie que manifestamente os apresenta, bastará indicar por qual diferença eles se distinguem dos outros que lhes servem como que de circuito natural.
O conhecimento de cada espécie poderá ser facilmente adquirido a partir desta caracterização geral:
“Dividiremos cada um dos três reinos em várias famílias que reunirão todos os seres que têm entre si relações evidentes, passaremos em revista todos os caracteres gerais e particulares dos seres contidos nessas famílias”;
dessa maneira,
“poderemos estar seguros de reportar todos esses seres às suas famílias naturais; é assim que, começando pela fuinha e pelo lobo, pelo cão e pelo urso, conheceremos suficientemente o leão, o tigre, a hiena, que são animais da mesma família “(30).
Vê-se de imediato o que opõe método e sistema.
- Só pode haver um método;
- pode-se inventar e aplicar um número considerável de sistemas:
- Adanson definiu 6531.
O sistema é arbitrário em todo o seu desenrolar, mas uma vez que o sistema de variáveis – o caráter – foi definido de início, não é mais possível modificá-lo, acrescentar-lhe ou retirar-lhe ainda que um só elemento.
- O método é imposto de fora, pelas semelhanças globais que aproximam as coisas;
- transcreve imediatamente a percepção no discurso;
- permanece, em seu ponto de partida, o mais perto possível da descrição;
- mas lhe é sempre possível trazer ao caráter geral que definiu empiricamente as modificações que se impõem: um traço que se acreditava essencial para um grupo de plantas ou de animais pode muito bem não ser mais que uma particularidade de alguns, desde que se descubram outros que, sem o possuírem, pertencem de maneira evidente à mesma família;
- o metodo deve estar sempre pronto a retificar-se a si mesmo.
Como diz Adanson,
- o sistema é como que “a regra da falsa posição no cálculo”: resulta de uma decisão, mas deve ser absolutamente coerente;
- o método, ao contrário, é “um arranjo qualquer de objetos ou de fatos aproximados por conveniências ou semelhanças quaisquer, que se exprime por uma noção geral e aplicável a todos esses objetos, sem contudo considerar essa noção fundamental ou esse princípio como absoluto nem invariável, nem tão geral que não possa sofrer exceção… O método só difere do sistema pela ideia que o autor vincula a seus princípios, encarando-os como variáveis no método e como absolutos no sistema”(32).
- o sistema só pode reconhecer, entre as estruturas do animal ou do vegetal, relações de coordenação: porque o caráter é escolhido, não em razão de sua importância funcional, mas em razão de sua eficácia combinatória; nada prova que, na hierarquia interior do indivíduo, tal forma de pistilo, tal disposição dos estames acarrete tal estrutura; se o germe da Adoxa está entre o cálice e a corola, se no arão os estames estão dispostos entre os pistilos, tudo isso não são nem mais nem menos que “estruturas singulares”(33): sua pouca importância só vem de sua raridade, ao passo que a igual divisão do cálíce e da corola não tem outro valor senão sua frequência(34).
- O método, em contrapartida, porque vaí das identidades e das diferenças mais gerais às que o são menos, é suscetível de fazer aparecer relações verticais de subordinação. Com efeito, permite ver quais são os caracteres suficientemente importantes para não serem jamais desmentidos numa dada família.
no saber clássico o conhecimento dos indivíduos empíricos só pode ser adquirido sobre o quadro contínuo, ordenado e universal de todas as diferenças possíveis.
- cada espécie se assinalava por si mesma,
- enunciava sua individualidade, independentemente de todas as outras:
- ainda que estas não existissem, os critérios de definição para as únicas que permanecessem visíveis não seriam por isso modificados.
- não é aquilo que é indicado – ou traído – pelo estigma que se descobre impresso nele;
- é aquilo que os outros não são;
- só existe em si mesmo no limite daquilo que dele se distingue.
- a identidade das espécies se fixará também por um jogo de diferenças, mas que aparecerão sobre o fundo das grandes unidades orgânicas com seus sistemas internos de dependência (esqueleto, respiração, circulação):
- os invertebrados não serão definidos somente pela ausência de vértebras, mas
- por um certo modo de respiração,
- pela existência de um tipo de circulação
- e por toda uma coesão orgânica que desenha uma unidade positiva.