A descontinuidade epistemológica de 1775-1825

1926-1984
"E foi realmente necessário
um acontecimento fundamental
- um dos mais radicais, sem dúvida,
que ocorreram na cultura ocidental,
para que se desfizesse
a positividade do saber clássico
e se constituísse uma positividade
de que, por certo,
não saímos inteiramente."
As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo VII – Os limites da representação;
tópico I. A idade da história
Cronologia da descontinuidade epistemológica de 1775-1825;
defasagens entre conquistas no pensamento filosófico e respectiva utilização prática
cronologia básica da descontinuidade epistemológica de 1775-1825


“Esse acontecimento, sem dúvida porque estamos ainda presos na sua abertura, nos escapa em grande parte. Sua amplitude, as camadas profundas que atingiu, todas as positividades que ele pode subverter e recompor, a potência soberana que lhe permitiu atravessar, em alguns anos apenas, o espaço inteiro de nossa cultura, tudo isso só poderia ser estimado e medido ao termo de uma inquirição quase infinita que só concerniria, nem mais nem menos, ao ser mesmo de nossa modernidade.
A constituição de tantas ciências positivas, o aparecimento da literatura, a volta da filosofia sobre seu próprio devir, a emergência da história ao mesmo tempo como saber e como modo de ser da empiricidade, não são mais que sinais de uma ruptura profunda.
Sinais dispersos no espaço do saber, pois que se deixam perceber na formação, aqui de uma filologia, ali de uma economia política, ali ainda de uma biologia.
Dispersão também na cronologia: certamente, o conjunto do fenômeno se situa entre datas facilmente assinaláveis
- (os pontos extremos são
os anos 1775 e 1825);
podem-se porém reconhecer, em cada um dos domínios estudados, duas fases sucessivas que se articulam uma à outra, mais ou menos por volta dos anos 1795-1800.
Na primeira dessas fases, o modo de ser fundamental das positividades não muda; as riquezas dos homens, as espécies da natureza, as palavras de que as línguas são povoadas permanecem ainda o que eram na idade clássica: representações duplicadas – representações cujo papel consiste em designar representações, analisá-las, decompô-las e compô-las, para fazer nelas surgir, com o sistema de suas identidades e de suas diferenças, o princípio geral de uma ordem.
O ponto de surgimento do homem em nossa cultura
“É somente na segunda fase que as palavras, as classes e as riquezas adquirirão um modo de ser que não é mais compatível com o da representação.
Em contra partida, o que se modifica muito cedo, desde as análises de Adam Smith, de A.-L. de Jussieu ou de Viq d’Azyr, na época de Jones ou de Anquetil-Duperron,
- é a configuração das positividades: a maneira como, no interior de cada uma,
- os elementos representativos funcionam uns em relação aos outros,
- a maneira como asseguram seu duplo papel de designação e de articulação,
- como chegam, pelo jogo das comparações, a estabelecer uma ordem.”
As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Cap.VII – Os limites da representação
tópico I. A idade da história

Alguns autores fundamentos filosóficos do liberalismo, e autores chave do pensamento moderno posicionados em relação à descontinuidade epistemológica de 1775-1825

Michel Foucault ao delinear sua arqueologia das ciências humanas, propósito do ‘As palavras e as coisas’, com certeza tomou conhecimento do trabalho desses autores.
- autores clássicos:
- Adam Smith, 1723-1790
- John Locke, 1632-1704
- David Hume, 1711-1776
- J. J. Rousseau, 1712-1778
- Jeremy Bentham, 1748-1832
- autores modernos:
- Immanuel Kant, 1724-1804
- David Ricardo, 1772-1823
- Georges Cuvier, 1769-1832
- Franz Bopp, 1792-1867
- Sigmund Schlomo Freud, 1856-1939
- e John Maynard Keynes, 1883-1936
- entre muitos outros.
Michel Foucault menciona ainda em destaque, como artífices do pensamento moderno e fontes para o seu próprio pensamento:
- Georges Cuvier, naturalista, 1769-1832
- Franz Bopp, linguista, 1792-1867
- David Ricardo, economista, 1772-1823
Em face da Ideologia, a critica kantiana marca, em contra partida, o limiar de nossa modernidade; interroga a representação,
- não segundo o movimento indefinido que vai do elemento simples a todas as suas combinações possíveis,
- mas a partir de seus limites de direito.
Sanciona assim, pela primeira vez, este acontecimento da cultura européia que é contemporâneo do fim do século XVIII:
a retirada do saber e do pensamento
para fora do espaço da representação.
Subsídios para uma alteração de nossa avaliação sobre a continuidade da ratio em nossa cultura, oferecidos pelo desenvolvimento da arqueologia das ciências humanas no As palavras e as coisas
Por muito forte que seja a impressão que temos
de um movimento quase ininterrupto da ratio européia desde o Renascimento até nossos dias,
- por mais que pensemos que a classificação de Lineu,
mais ou menos adaptada, pode de modo geral
continuar a ter uma espécie de validade, - que a teoria do valor de Condillac se encontra em parte no marginalismo do século XIX,
- que Keynes realmente sentiu a afinidade de suas próprias análises com as de Cantillon,
- que o propósito da Gramática geral (tal como o encontramos nos autores de Port-Royal ou em Bauzée) não está tão afastado de nossa atual linguística
– toda esta quase-continuidade ao nível das idéias e dos temas não passa, certamente, de um efeito de superfície;
no nível arqueológico, vê-se que o sistema das positividades mudou de maneira maciça na curva dos séculos XVIII e XIX.
Não que a razão tenha feito progressos; mas o modo de ser das coisas e da ordem que, distribuindo-as, oferece-as ao saber; é que foi profundamente alterado.
As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Prefácio
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