O lugar do rei: Las meninas

Las meniñas, de Diego Velazquez, de 1656
pintura a óleo, com 3,18 m x 2,76 m
do período barroco, Museu do Prado
Em tantas ignorâncias, em tantas interrogações permanecidas em suspenso, seria preciso, sem dúvida, deter-se:
- aí está fixado o fim do discurso,
- e o recomeço talvez do trabalho.
Há ainda, no entanto, algumas palavras a dizer.
Palavras cujo estatuto é, sem dúvida, difícil de justificar, pois se trata de introduzir no último instante e como que por um lance de teatro artificial, uma personagem que não figurara ainda no grande jogo clássico das representações.
Seria interessante encontrar a lei prévia desse jogo no quadro Las meninas, onde a representação é representada em cada um de seus momentos:
- pintor, palheta, grande superfície escura da tela virada, quadros pendurados na parede, espectadores que olham e que são, por sua vez, enquadrados por aqueles que os olham;
- enfim, no centro, no coração da representação, o mais próximo do que é essencial, o espelho que mostra o que é representado, mas como um reflexo tão longínquo, tão imerso num espaço irreal, tão estranho a todos os olhares que se voltam para outras partes, que não é mais do que a mais frágil reduplicação da representação.
Todas as linhas interiores do quadro e sobretudo aquelas que vêm do reflexo central apontam para aquilo mesmo que é representado mas que está ausente.
Ao mesmo tempo
- objeto – por ser o que o artista representado está em via de recopiar sobre a tela –
- e sujeito -,
- visto que o que o pintor tinha diante dos olhos ao se representar no seu trabalho era ele próprio,
- visto que os olhares figurados no quadro estão dirigidos para esse lugar fictício da personagem régia que é o lugar real do pintor,
- visto finalmente que o hóspede desse lugar ambíguo, onde se alternam, como que num pestanejar sem limite, o pintor e o soberano, é o espectador cujo olhar transforma o quadro num objeto, pura representação dessa ausência essencial.
Ademais, essa ausência não é uma lacuna, salvo para o discurso que laboriosamente decompõe o quadro, pois ela não cessa jamais de ser habitada e de o ser realmente, como o provam a atenção do pintor representado, o respeito das personagens que o quadro figura, a presença da grande tela vista ao revés e nosso próprio olhar para quem esse quadro existe e para quem, do fundo do tempo, ele foi disposto.
No pensamento clássico,
aquele para quem a representação existe,
e que nela se representa a si mesmo,
aí se reconhecendo por imagem ou reflexo,
aquele que trama [o homem] todos os fios entrecruzados
da “representação em quadro” -,
esse jamais se encontra lá presente.
Antes do fim do século XVIII,
o homem não existia.
Não mais que a potência da vida, a fecundidade do trabalho ou a espessura histórica da linguagem.
É uma criatura muito recente que a demiurgia do saber fabricou com suas mãos há menos de 200 anos: mas ele envelheceu tão depressa que facilmente se imaginou que ele esperara na sombra, durante milênios, o momento de iluminação em que seria enfim conhecido.
Certamente poder-se-ia dizer que
- a gramática geral,
- a história natural,
- a análise das riquezas
eram, num certo sentido, maneiras de reconhecer o homem, mas é preciso discernir.
Sem dúvida, as ciências naturais trataram do homem como
- de uma espécie
- ou de um gênero:
a discussão sobre o problema das raças, no século XVIII, o testemunha.
A gramática e a economia, por outro lado, utilizavam noções como as de necessidade, de desejo, ou de memória e de imaginação.
Mas não havia
consciência epistemológica
do homem como tal.
A epistémê clássica se articula segundo linhas que de modo algum isolam o domínio próprio e específico do homem.
E se se insistir ainda, se se objetar que nenhuma época, porém, concedeu tanto à natureza humana, deu-lhe estatuto mais estável, mais definitivo, mais bem ofertado ao discurso – poder-se-á responder dizendo que o próprio conceito de natureza humana e a maneira como ele funcionava excluíam que houvesse uma ciência clássica do homem.
É preciso notar que, na epistémê clássica, as funções da “natureza” e da “natureza humana” opõem-se termo a termo:
- a natureza, pelo jogo de uma justaposição real e desordenada, faz surgir a diferença no contínuo ordenado dos seres;
- a natureza humana faz aparecer o idêntico na cadeia desordenada das representações, e isso pelo jogo de uma exposição das imagens.
Uma implica um desarranjo de uma história para a constituição das paisagens atuais; a outra implica a comparação de elementos inatuais que desfazem a trama de uma seqüência cronológica.
Apesar dessa oposição, ou, antes, através dela, vê-se delinear-se a relação positiva entre a natureza e a natureza humana.
Com efeito, elas lidam com elementos idênticos (o mesmo, o contínuo, a imperceptível diferença, a sucessão sem ruptura); ambas fazem aparecer, sobre uma trama ininterrupta, a possibilidade de uma análise geral que permite repartir identidades isoláveis e as visíveis diferenças, segundo um espaço em quadro e uma seqüência ordenada.
Mas não o conseguem uma sem a outra, e é assim que se comunicam.
Com efeito, pelo poder que tem de se reduplicar (na imaginação e na lembrança, e na atenção múltipla que compara), a cadeia das representações pode reencontrar, por sob a desordem da terra, a superfície sem ruptura dos seres; a memória, a princípio temerária e entregue aos caprichos das representações tais quais se oferecem, fixa-se, pouco a pouco, num quadro geral de tudo o que existe; o homem pode então fazer entrar o mundo na soberania de um discurso que tem o poder de representar sua representação.
No ato de falar, ou, antes (mantendo-se o mais perto possível do que há de essencial para a experiência clássica da linguagem), no ato de nomear, a natureza humana, como dobra da representação sobre si mesma, transforma a seqüência linear dos pensamentos numa tabela constante de seres parcialmente diferentes: o discurso em que ela reduplica suas representações e as manifesta liga-a à natureza.
Inversamente, a cadeia dos seres é ligada à natureza humana pelo jogo da natureza: visto que o mundo real, tal como se dá aos olhares, não é o desenrolar puro e simples da cadeia fundamental dos seres, mas oferece-a em fragmentos misturados – repetidos e descontínuos -, a série das representações no espírito não é constrangida a seguir o caminho contínuo das diferenças imperceptíveis; nela os extremos se encontram, as mesmas coisas se dão várias vezes; os traços idênticos se superpõem na memória; as diferenças eclodem.
Assim, a grande superfície indefinida e contínua imprime-se em caracteres distintos, em traços mais ou menos gerais, em marcas de identificação. E, por conseguinte, em palavras. A cadeia dos seres torna-se discurso, ligando-se assim à natureza humana e à série das representações.
Esse processo de comunicação entre a natureza e a natureza humana, a partir de duas funções opostas mas complementares, pois que não podem exercer-se uma sem a outra, traz consigo amplas conseqüências teóricas.
Para o pensamento clássico, o homem não se aloja na natureza por intermédio dessa “natureza” regional, limitada e específica que lhe é concedida por direito de nascimento como a todos os outros seres.
Se a natureza humana se imbrica com a natureza, é pelos mecanismos do saber e pelo seu funcionamento; ou, antes, na grande disposição da epistémê clássica, a natureza, a natureza humana e suas relações são momentos funcionais, definidos e previstos.
E o homem,
como realidade espessa e primeira,
como objeto difícil
e sujeito soberano de todo conhecimento possível,
não tem aí nenhum lugar.
Os temas modernos de um indivíduo que vive, fala e trabalha segundo as leis de uma economia, de uma filologia e de uma biologia, mas que, por uma espécie de torção interna e de superposição, teria recebido, pelo jogo dessas próprias leis, o direito de conhecê-las e de colocá-las inteiramente à luz, todos esses temas, para nós familiares e ligados à existência das “ciências humanas” são excluídos pelo pensamento clássico: não era possível naquele tempo que se erguesse, no limite do mundo, essa estatura estranha de um ser cuja natureza (a que o determina, o detém e o atravessa desde o fundo dos tempos) consistisse em conhecer a natureza e, por conseguinte, a si mesmo como ser natural.
Em contrapartida, no ponto de encontro entre a representação e o ser, lá onde se entrecruzam natureza e natureza humana – nesse lugar onde hoje cremos reconhecer a existência primeira, irrecusável e enigmática do homem – o que o pensamento clássico faz surgir é o poder do discurso. Isto é, da linguagem na medida em que ela representa – a linguagem que nomeia, que recorta, que combina, que articula e desarticula as coisas, tornando-as visíveis na transparência das palavras.
Nesse papel, a linguagem transforma a seqüência das percepções em quadro e, em retorno, recorta o contínuo dos seres em caracteres. Lá onde há discurso, as representações se expõem e se justapõem; as coisas se reúnem e se articulam.
A vocação profunda da linguagem clássica foi sempre a de constituir “quadro”:
- quer fosse como discurso natural,
- recolhimento da verdade,
- descrição das coisas,
- corpus e conhecimentos exatos,
- ou dicionário enciclopédico.
Ela só existe, portanto, para ser transparente;
- perdeu aquela consistência secreta que, no século XVI, lhe dava a espessura de uma palavra a decifrar e a imbricava com as coisas do mundo;
- não adquiriu ainda essa existência múltipla acerca da qual hoje nos interrogamos:
na idade clássica, o discurso é essa necessidade translúcida através da qual passam a representação e os seres – quando os seres são representados ao olhar do espírito, quando a representação torna visíveis os seres em sua verdade.
A possibilidade de conhecer as coisas e sua ordem passa, na experiência clássica, pela soberania das palavras:
- estas não são estritamente nem marcas a decifrar (como na época do Renascimento),
- nem instrumentos mais ou menos fiéis e domináveis (como na época do positivismo);
- formam, antes, a rede incolor a partir da qual os seres se manifestam e as representações se ordenam.
Daí, sem dúvida, o fato de que a reflexão clássica sobre a linguagem, embora faça parte de uma disposição geral em que ela entra ao mesmo título que a análise das riquezas e a história natural, exerça, em relação a elas, um papel diretivo.
Mas a conseqüência essencial é que a linguagem clássica como discurso comum da representação e das coisas, como lugar em cujo interior natureza e natureza humana se entrecruzam, exclui absolutamente qualquer coisa que fosse “ciência do homem”.
Enquanto essa linguagem falou na cultura ocidental, não era possível que a existência humana fosse posta em questão por ela própria, pois o que nela se articulava eram a representação e o ser.
O discurso que, no século XVII, ligou um ao outro o “Eu penso” e o “Eu sou” daquele que o efetivava – esse discurso permaneceu, sob uma forma visível, a essência mesma da linguagem clássica, pois o que nele se articulava, de pleno direito, eram a representação e o ser.
A passagem do “Eu penso” ao “Eu sou” realizava-se sob a luz da evidência, no interior de um discurso cujo domínio e cujo funcionamento consistiam por inteiro em articular, um ao outro, o que se representa e o que é.
Não há, pois, que objetar a essa passagem nem que o ser em geral não está contido no pensamento, nem que este ser singular tal como é designado pelo “Eu sou” não foi interrogado nem analisado por si próprio.
Ou, antes, essas objeções podem realmente nascer e fazer valer seu direito, mas a partir de um discurso que é profundamente outro e que não tem por razão de ser o liame entre a representação e o ser; só uma problemática que contorne a representação poderá formular semelhantes objeções.
Mas, enquanto durou o discurso clássico, uma interrogação sobre o modo de ser implicado pelo Cogito não podia ser articulada.
As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
Capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico II. O lugar do rei