IV. O empírico e o transcendental

IV. O empírico e o transcendental

O homem, na analítica da finitude, é um estranho duplo empírico-transcendental, porquanto é um ser tal que nele se tomará conhecimento do que torna possível todo conhecimento. 

Mas a natureza humana dos empiristas não desempenhava, no século XVIIl, o mesmo papel?

De fato, 

  • o que então se analisava eram as propriedades e as formas da representação que permitiam o conhecimento em geral (é assim que Condillac definia as operações necessárias e suficientes para que a representação se desdobrasse em conhecimento: reminiscência, consciência de si, imaginação, memória); 
  • agora que o lugar da análise não é mais a representação, mas o homem em sua finitude, trata-se de trazer à luz as condições do conhecimento a partir dos conteúdos empíricos que nele são dados. 

Para o movimento geral do pensamento moderno, pouco importa onde esses conteúdos se acham localizados: a questão não está em saber se foram buscados na introspecção ou em outras formas de análise. Pois o limiar da nossa modernidade não está situado no momento em que se pretendeu aplicar ao estudo do homem métodos objetivos, mas no dia em que se constituiu um duplo empírico-transcendental a que se chamou homem. 

Viu-se então aparecer duas espécies de análises: 

  • as que se alojaram no espaço do corpo e que, pelo estudo da percepção, dos mecanismos sensoriais, dos esquemas neuromotores, da articulação comum às coisas e ao organismo, funcionaram como uma espécie de estética transcendental; aí se descobria que o conhecimento tinha condições anatomofisiológicas, que ele se formava pouco a pouco na nervura do corpo, que nele tinha talvez uma sede privilegiada, que suas formas, em todo o caso, não podiam ser dissociadas das singularidades de seu funcionamento; em suma, que havia uma natureza do conhecimento humano que lhe determinava as formas e que podia, ao mesmo tempo, ser-lhe manifestada nos seus próprios conteúdos empíricos. 
  • Houve também as análises que, pelo estudo das ilusões da humanidade, mais ou menos antigas, mais ou menos difíceis de vencer, funcionaram como uma espécie de dialética transcendental; mostrava-se assim que o conhecimento tinha condições históricas, sociais ou econômicas, que ele se formava no interior de relações tecidas entre os homens e que não era independente da figura particular que elas poderiam assumir aqui ou ali, em suma, que havia uma história do conhecimento humano que podia ao mesmo tempo ser dada ao saber empírico e prescrever-lhe suas formas.

Ora, o que há de particular nessas análises é que não têm, ao que parece, necessidade alguma umas das outras; bem mais, podem dispensar todo recurso a uma analítica (ou a uma teoria do sujeito): elas pretendem poder repousar apenas sobre si mesmas, já que são os próprios conteúdos que funcionam como reflexão transcendental. 

Mas, de fato, a busca de uma natureza ou de uma história do conhecimento, no movimento em que ela restringe a dimensão própria da crítica aos conteúdos de um conhecimento empírico, supõe o uso de uma certa crítica.

Crítica que não é o exercício de uma reflexão pura, mas o resultado de uma série de divisões mais ou menos obscuras. E, antes de tudo, divisões relativamente elucidadas, mesmo se arbitrárias: 

  • a que distingue o conhecimento rudimentar, imperfeito, mal equilibrado, nascente, daquele que se pode dizer, se não acabado, ao menos constituído em suas formas estáveis e definitivas (esta divisão toma possível o estudo das condições naturais do conhecimento); 
  • a que distingue a ilusão da verdade, a quimera ideológica da teoria científica (esta divisão torna possível o estudo das condições históricas do conhecimento); 

mas há uma divisão mais obscura e mais fundamental: é a da própria verdade; 

  • deve existir, com efeito, uma verdade que é da ordem do objeto – aquela que pouco a pouco se esforça, se forma, se equilibra e se manifesta através do corpo e dos rudimentos da percepção, aquela igualmente que se desenha à medida que as ilusões se dissipam e que a história se instaura num estatuto desalienado; 
  • mas deve existir também uma verdade que é da ordem do discurso – uma verdade que permite sustentar sobre a natureza ou a história do conhecimento uma linguagem que seja verdadeira. 

É o estatuto desse discurso verdadeiro que permanece ambíguo. 

Das duas uma: 

  • ou esse discurso verdadeiro encontra seu fundamento e seu modelo nessa verdade empírica cuja gênese ele retraça na natureza e na história, e ter-se-á uma análise de tipo positivista (a verdade do objeto prescreve a verdade do discurso que descreve sua formação); 
  • ou o discurso verdadeiro se antecipa a essa verdade de que define a natureza e a história, esboça-a de antemão e a fomenta de longe, e, então, ter-se-á um discurso de tipo escatológico (a verdade do discurso filosófico constitui a verdade em formação). 

A bem dizer, trata-se aí menos de uma alternativa que da oscilação inerente a toda análise que faz valer o empírico ao nível do transcendental. 

Comte e Marx são realmente testemunhas desse fato de que 

  • a escatologia (como verdade objetiva por vir do discurso sobre o homem) 
  • e o positivismo (como verdade do discurso definida a partir daquela do objeto) 

são arqueologicamente indissociáveis: um discurso que se pretende ao mesmo tempo empírico e crítico só pode ser, a um tempo, positivista e escatológico; o homem aí aparece como uma verdade ao mesmo tempo reduzida e prometida. A ingenuidade pré-crítica nele reina sem restrições.

É por isso que o pensamento moderno não pôde evitar e a partir justamente desse discurso ingênuo – a busca do lugar de um discurso que não fosse nem da ordem da redução nem da ordem da promessa: 

  • um discurso cuja tensão mantivesse separados o empírico e o transcendental, permitindo, no entanto, visar a um e outro ao mesmo tempo; 
  • um discurso que permitisse analisar o homem como sujeito, isto é, como lugar de conhecimentos empíricos mas reconduzidos o mais próximo possível do que os toma possíveis, e como forma pura imediatamente presente nesses conteúdos; 
  • um discurso, em suma, que desempenhasse em relação à quase-estética e à quase-dialética o papel de uma analítica que, ao mesmo tempo, as fundasse numa teoria do sujeito e lhes permitisse talvez articular-se com esse termo terceiro e intermediário em que se enraizariam, ao mesmo tempo, a experiência do corpo e a da cultura. 

Um papel tão complexo, tão super-determinado e tão necessário foi desempenhado, no pensamento moderno, pela análise do vivido. 

O vivido, com efeito, é o espaço onde todos os conteúdos empíricos são dados à experiência; é também a forma originária que os torna em geral possíveis e designa seu enraizamento primeiro; ele estabelece, na verdade, comunicação entre o espaço do corpo e o tempo da cultura, as determinações da natureza e o peso da história, sob a condição, porém, de que o corpo e, através dele, a natureza sejam primeiramente dados na experiência de uma espacialidade irredutível, e de que a cultura, portadora de história, seja primeiramente experimentada no imediato das significações sedimentadas. 

Pode-se compreender perfeitamente que a análise do vivido se tenha instaurado, na reflexão moderna, como uma contestação radical do positivismo e da escatologia; 

  • que tenha tentado restaurar a dimensão esquecida do transcendental; 
  • que tenha pretendido conjurar o discurso ingênuo de uma verdade reduzida ao empírico, e o discurso profético que ingenuamente promete o advento à experiência de um homem, enfim. 

É também verdade que a análise do vivido não deixa de ser um discurso de natureza mista: 

  • endereça-se a uma camada específica mas ambígua, bastante concreta, para que se lha possa aplicar uma linguagem meticulosa e descritiva, e bastante recuada, 
  • entretanto, em relação à positividade das coisas, para que se possa, a partir daí, escapar a essa ingenuidade, contestá-la e buscar-lhe fundamentos. 

Ela procura articular 

  • a objetividade possível de um conhecimento da natureza 
  • com a experiência originária que se esboça através do corpo; 

e articular 

  • a história possível de uma cultura 
  • com a espessura semântica que, a um tempo, se esconde e se mostra na experiência vivida. 

Portanto, não faz mais que preencher, com mais cuidado, as exigências apressadas que foram postas quando se pretendeu fazer valer, no homem, o empírico pelo transcendental. 

Vê-se a rede cerrada que, apesar das aparências, religa os pensamentos de tipo positivista ou escatológico (o marxismo em primeiro lugar) com as reflexões inspiradas na fenomenologia. 

A aproximação recente não é da ordem da conciliação tardia: ao nível das configurações arqueológicas, eles eram necessários, uns como outros – e uns aos outros – desde a constituição do postulado antropológico, isto é, desde o momento em que o homem apareceu como duplo empírico-transcendental.

A verdadeira contestação do positivismo e da escatologia não está, pois, num retorno ao vivido (que, na verdade, antes os confirma, enraizando-os); mas, se ela pudesse exercer-se, seria a partir de uma questão que, sem dúvida, parece aberrante, de tal modo está em discordância com o que tornou historicamente possível todo o nosso pensamento. 

Essa questão consistiria em perguntar se verdadeiramente o homem existe. Acredita-se que é simular um paradoxo supor, por um só instante, o que poderiam ser o mundo, o pensamento e a verdade se o homem não existisse. 

É que estamos tão ofuscados pela recente evidência do homem que sequer guardamos em nossa lembrança o tempo, todavia pouco distante, em que existiam o mundo, sua ordem, os seres humanos, mas não o homem. 

Compreende-se o poder de abalo que pôde ter e que conserva ainda para nós o pensamento de Nietzsche, quando anunciou, sob a forma do acontecimento iminente, da Promessa-Ameaça, que, bem logo, o homem não seria mais – mas, sim, o super-homem; o que, numa filosofia do Retorno, queria dizer que o homem, já desde muito tempo, havia desaparecido e não cessava de desaparecer, e que nosso pensamento moderno do homem, nossa solicitude para com ele, nosso humanismo dormiam serenamente sobre sua retumbante inexistência. 

A nós, que nos acreditamos ligados a uma finitude que só a nós pertence e que nos abre, pelo conhecer, a verdade do mundo, não deveria ser lembrado que estamos presos ao dorso de um tigre?

As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas;
capítulo IX – O homem e seus duplos;
tópico IV. O empírico e o transcendental