Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico II - Ricardo

David Ricardo (Londres, 18 de Abril de 1772 — Gatcombe Park, 11 de setembro de 1823) foi um economista e político britânico – um dos mais influentes economistas clássicos, ao lado de Thomas Malthus, Adam Smith e James Mill.[1] Ricardo e sua família tem origens sefarditas que remontam a Holanda e Portugal.[2]
Na análise de Adam Smith,
o trabalho devia seu privilégio ao poder que se lhe reconhecia de estabelecer entre os valores das coisas uma medida constante:
permitia fazer equivaler na troca objetos de necessidade cujo aferimento de outro modo teria sido exposto à mudança ou submetido a uma essencial relatividade.
No entanto, só podia assumir tal papel à custa de uma condição:
era preciso supor que
- a quantidade de trabalho indispensável para produzir uma coisa fosse igual
- à quantidade de trabalho que essa coisa, em retorno, pudesse comprar no processo de troca.
Ora, como justificar essa identidade, em que fundá-Ia a não ser sobre uma certa assimilação, admitida na sombra mais que esclarecida, entre
- o trabalho como atividade de produção
- e o trabalho como mercadoria que se pode comprar e vender?
Nesse segundo sentido, ele não pode ser utilizado como medida constante, pois “experimenta tantas variações quanto as mercadorias ou bens com os quais pode ser comparado”(1).
Essa confusão, em Adam Smith, tinha sua origem no primado concedido à representação:
- toda mercadoria representava certo trabalho,
- e todo trabalho podia representar certa quantidade de mercadoria.
A atividade dos homens e o valor das coisas comunicavam-se no elemento transparente da representação.
É aí que a análise de Ricardo encontra seu lugar
e a razão de sua importância decisiva.
Ela não é a primeira a organizar
um lugar importante para o trabalho no jogo da economia; mas faz explodir a unidade da noção,
e distingue, pela primeira vez,
de uma forma radical,
- essa força, esse esforço, esse tempo do operário que se compram e se vendem,
- e essa atividade que está na origem do valor das coisas.
Ter-se-á pois,
- por um lado, o trabalho que os operários oferecem, que os empresários aceitam ou demandam e que é retribuído pelos salários;
- por outro, ter-se-á o trabalho que extrai os metais, produz os bens, fabrica os objetos, transporta as mercadorias e forma assim valores permutáveis que antes dele não existiam e sem ele não teriam aparecido.
Certamente, para Ricardo como para Smith, o trabalho pode realmente medir a equivalência das mercadorias que passam pelo circuito das trocas:
“Na infância das sociedades, o valor permutável das coisas ou a regra que fixa a quantidade que se deve dar de um objeto por outro só depende da quantidade comparativa de trabalho que foi empregada na produção de cada um deles.”(2)
A diferença, porém, entre Smith e Ricardo está no seguinte:
- para o primeiro, o trabalho, porque analisável em jornadas de subsistência, pode servir de unidade comum a todas as outras mercadorias (de que fazem parte os próprios bens necessários à subsistência);
- para o segundo, a quantidade de trabalho permite fixar o valor de uma coisa,
- não apenas porque este seja representável em unidades de trabalho,
- mas primeiro e fundamentalmente porque o trabalho como atividade de produção é “a fonte de todo valor”.
Já não pode este ser definido, como na idade clássica, a partir do sistema total de equivalências e da capacidade que podem ter as mercadorias de se representarem umas às outras.
O valor deixou de ser signo,
tornou-se um produto.
Se as coisas valem tanto quanto o trabalho que a elas se consagrou, ou se, pelo menos, seu valor está em proporção a esse trabalho,
- não é porque o trabalho seja um valor fixo, constante e permutável todos os céus e em todos os tempos,
- mas sim porque todo valor, qualquer que seja, extrai sua origem do trabalho.
E a melhor prova disso está em que
- o valor das coisas aumenta com a quantidade de trabalho que lhes temos de consagrar se as quisermos produzir;
- porém não muda com o aumento ou baixa dos salários pelos quais o trabalho se troca como qualquer outra mercadoria(3).
Circulando nos mercados, trocando-se uns por outros, os valores realmente têm ainda um poder de representação. Extraem esse poder, porém, de outra parte – desse trabalho mais primitivo e radical do que toda representação e que, portanto, não pode definir-se pela troca.
- Enquanto no pensamento clássico o comércio e a troca servem de base insuperável para a análise das riquezas (e isso mesmo ainda em Adam Smith, para quem a divisão do trabalho é comandada pelos critérios da permuta),
- desde Ricardo, a possibilidade da troca está assentada no trabalho;
- e a teoria da produção,
- doravante, deverá sempre preceder a da circulação.
Daí, três consequências que importa reter.
A primeira é a instauração de uma série causal cuja forma é radicalmente nova.
No século XVIII, não se ignorava, de modo algum, o jogo das determinações econômicas: explicava-se como a moeda podia dissipar-se ou afluir, os preços subirem ou baixarem, a produção crescer, estagnar ou diminuir; mas todos esses movimentos eram definidos a partir de um espaço em quadro onde os valores se podiam representar uns aos outros; os preços aumentavam quando os elementos representantes cresciam mais depressa que os elementos representados; a produção diminuía quando os instrumentos de representação diminuíam em relação às coisas a serem representadas etc. Tratava-se sempre de uma causalidade circular e de superfície, pois que não concernia jamais senão aos poderes recíprocos do analisando e do analisado.
A partir de Ricardo, o trabalho, desnivelado em relação à representação, e instalando-se em uma região onde ela não tem mais domínio, organiza-se segundo uma causalidade que lhe é própria.
A quantidade de trabalho necessária para a fabricação de uma coisa (ou para sua colheita, ou para seu transporte) e que determina seu valor depende das formas de produção: segundo o grau de divisão no trabalho, a quantidade e a natureza dos instrumentos, o volume de capital de que dispõe o empresário e o que ele investiu nas instalações de sua fábrica, a produção será modificada; em certos casos será dispendiosa; em outros, o será menos(4). Mas, como em todos os casos, esse custo (salários, capital e rendimentos, lucros) é determinado pelo trabalho já efetuado e aplicado a essa nova produção, vê-se nascer uma grande série linear e homogênea que é a da produção. Todo trabalho tem um resultado que, sob uma forma ou outra, é aplicado a um novo trabalho cujo custo ele define; e esse novo trabalho, por sua vez, entra na formação de um valor etc. Essa acumulação em série rompe pela primeira vez com as determinações recíprocas, as únicas que atuavam na análise clássica das riquezas. Introduz, por isso mesmo, a possibilidade de um tempo histórico contínuo, ainda que de fato, como veremos, Ricardo só pense na evolução futura sob a forma de um afrouxamento e, em última análise, de uma suspensão total da história.
Ao nível das condições de possibilidade do pensamento, Ricardo, ao dissociar formação e representatividade do valor, permitiu a articulação da economia com a história.
As “riquezas”, em vez de se distribuírem num quadro e de constituírem assim um sistema de equivalência, organizam-se e se acumulam numa cadeia temporal: todo valor se determina não segundo os instrumentos que permitem analisá-lo, mas segundo as condições de produção que o fizeram nascer; e, mais ainda, essas condições são determinadas por quantidades de trabalho aplicadas para produzi-Ias. Antes mesmo que a reflexão econômica estivesse ligada à história dos acontecimentos ou das sociedades num discurso explícito, a historicidade penetrou, e por longo tempo sem dúvida, o modo de ser da economia. Esta, em sua positividade, não está mais ligada a um espaço simultâneo de diferenças e de identidades, mas ao tempo de produções sucessivas.
Quanto à segunda conseqüência, não menos decisiva, diz respeito à noção de raridade.
Para a análise clássica, a raridade era definida em relação à necessidade: admitia-se que a raridade se acentuava ou se deslocava na medida em que as necessidades aumentavam ou tomavam formas novas; para os que têm fome, raridade do trigo; para os ricos que frequentam a sociedade, raridade do diamante. Quanto a essa raridade, os economistas do século XVIII – quer fossem fisiocratas quer não – pensavam que a terra, ou o trabalho da terra, permitia superá-Ia, ao menos em parte: é que a terra tem a maravilhosa propriedade de poder cobrir necessidades bem mais numerosas do que aquelas dos homens que a cultivam.
No pensamento clássico,
há raridade porque os homens se representam objetos que não possuem;
mas há riqueza porque a terra produz, com certa abundância, objetos que não são logo consumidos e que podem então representar outros nas trocas e na circulação.
Ricardo inverte os termos dessa análise:
a aparente generosidade da terra só é de fato devida à sua avareza crescente;
e o que é primeiro não é a necessidade e a representação da necessidade no espírito dos homens,
é pura e simplesmente uma carência originária.
Com efeito, o trabalho – isto é, a atividade econômica só apareceu na história do mundo no dia em que os homens se acharam numerosos demais para poderem nutrir-se dos frutos espontâneos da terra. Não tendo com que subsistir, alguns morriam e muitos outros estariam mortos se não se pusessem a trabalhar a terra. E, na medida em que a população se multiplicava, novas faixas da floresta deviam ser abatidas, desbravadas e cultivadas. A cada instante de sua história, a humanidade só trabalha sob a ameaça da morte: toda população, se não encontra novos recursos, está fadada a extinguir-se; e inversamente, à medida que os homens se multiplicam, empreendem trabalhos mais numerosos, mais longínquos, mais difíceis, menos imediatamente fecundos. Como a pendência da morte se faz mais temível à proporção que as subsistências necessárias se tornam de mais difícil acesso, o trabalho, inversamente, deve crescer em intensidade e utilizar todos os meios de se tomar mais prolífico. Assim, o que torna a economia possível e necessária é uma perpétua e fundamental situação de raridade: em face de uma natureza que por si mesma é inerte e, salvo numa parte minúscula, estéril, o homem arrisca sua vida.
Não é mais nos jogos da representação que a economia encontra seu princípio, mas do lado dessa região perigosa onde a vida afronta a morte. Ela remete, pois, a essa ordem de considerações bastante ambíguas a que se pode chamar antropológicas: reporta-se, com efeito, às propriedades biológicas de uma espécie humana, acerca da qual Malthus, na mesma época que Ricardo, mostrou que tende sempre a crescer caso não se lhe traga remédio ou coerção; reporta-se também à situação desses seres vivos que se arriscam a não encontrar na natureza que os rodeia aquilo com que assegurar sua existência; ela designa enfim o trabalho e a dureza mesma desse trabalho como o único meio de negar a carência fundamental e triunfar por um instante sobre a morte. A positividade da economia se aloja nesse vão antropológico.
O Homo oeconomicus não é aquele que se representa suas próprias necessidades bem como os objetos capazes de as saciar; é aquele que passa, usa e perde sua vida escapando da iminência da morte. É um ser finito: e assim como, desde Kant, a questão da atitude se tornou mais fundamental que a análise das representações (já não podendo esta ser senão derivada em relação àquela), desde Ricardo a economia repousa, de maneira mais ou menos explícita, numa antropologia que tenta atribuir à finitude formas concretas.
A economia do século XVIII estava relacionada a uma máthêsis como ciência geral de todas as ordens possíveis; a do século XIX está referida a uma antropologia como discurso sobre a finitude natural do homem.
Por isso mesmo, a necessidade e o desejo retiram-se para o lado da esfera subjetiva – para essa região que, na mesma época, está em via de se tomar o objeto da psicologia.
É lá, precisamente, que, na segunda metade do século XIX, os marginalistas irão buscar a noção de utilidade. Julgar-se-á então que Condillac, ou Graslin, ou Fortbonnais, “já” eram “psicologistas”, visto que analisavam o valor a partir da necessidade; e, do mesmo modo, julgar-se-á que os fisiocratas foram os primeiros antepassados de uma economia que, desde Ricardo, analisou o valor a partir dos custos de produção.
De fato, ter-se-á saído da configuração que tornava simultaneamente possíveis Quesnay e Condillac; terse-á escapado ao reino dessa epistémê que assentava o conhecimento na ordem das representações; e ter-se-á entrado em outra disposição epistemológica, a que distingue, não sem referi-Ias uma à outra, uma psicologia das necessidades representadas e uma antropologia da finitude natural.
Enfim, a última conseqüência concerne à evolução da economia.
Ricardo mostra que não se deve interpretar como fecundidade da natureza o que marca, e de uma forma sempre mais insistente, sua essencial avareza.
A renda fundiária, na qual todos os economistas, até o próprio Adam Smith(5), viam o signo de uma fecundidade própria à terra, só existe na medida exata em que o trabalho agrícola se toma cada vez mais duro, cada vez menos “rentável”.
À medida que se é compelido, pelo crescimento ininterrupto da população, a desbravar terras menos fecundas, a colheita dessas novas unidades de trigo exige mais trabalho: seja porque os cultivos devam ser mais profundos, seja porque a superfície semeada deva ser mais vasta, seja porque se necessite de mais adubo; o custo da produção é portanto muito mais elevado para estas últimas colheitas do que para as primeiras, que foram obtidas, na origem, em terras ricas e fecundas. Ora, esses bens, tão difíceis de obter, não são menos indispensáveis que os outros, se não se quiser que certa parte da humanidade morra de fome.
É, portanto, o custo de uma produção de trigo em terras mais estéreis que determinará o preço do trigo em geral, mesmo se foi obtido com duas ou três vezes menos trabalho.
Daí, para as terras fáceis de cultivar, um aumento de beneficio, que permite a seus proprietários arrendá-Ias retirando antecipadamente um importante rendimento. A renda fundiária é o efeito não de uma natureza prolífica, mas de uma terra avara. Ora, essa avareza não cessa de tornar-se cada dia mais sensível: a população, com efeito, se desenvolve; começa-se a lavrar terras cada vez mais pobres; os custos de produção aumentam; aumentam os preços agrícolas e com eles as rendas fundiárias.
Sob essa pressão, é bem possível – necessário mesmo – que também o salário nominal dos operários comece a crescer a fim de cobrir as despesas mínimas de subsistência; mas, por essa mesma razão, o salário real não poderá praticamente elevar-se acima do que é indispensável para que o operário se vista, se aloje e se alimente.
E, finalmente, o lucro dos empresários baixará na medida mesma em que a renda fundiária aumentar e em que a retribuição operária permanecer fixa. Baixaria mesmo indefinidamente a ponto de desaparecer, se não se caminhasse para um limite; com efeito, a partir de certo momento os lucros industriais serão demasiado baixos para que se faça trabalhar novos operários; na falta de salários suplementares, a mão-de-obra não poderá mais crescer, a população ficará estagnada; não será necessário desbravar novas terras ainda mais infecundas que as precedentes: a renda fundiária atingir seu teto e não exercerá mais sua costumeira pressão sobre os rendimentos industriais, que poderão então se estabilizar.
A História enfim se tornará estanque.
A finitude do homem será definida – de uma vez por todas, isto é, por um tempo indefinido.
Paradoxalmente, é a historicidade introduzida na economia por Ricardo que permite pensar essa imobilização da História.
O pensamento clássico concebia para a economia um futuro sempre aberto e sempre cambiante; mas tratava-se, de fato, de uma modificação de tipo espacial: o quadro que, pensava-se, as riquezas formavam ao se desenvolverem, e ao serem trocadas e ordenadas, podia muito bem ampliar-se permanecia, porém, o mesmo quadro, cada elemento perdendo um pouco de sua superfície relativa mas entrando em relação com novos elementos.
Em contrapartida, é o tempo cumulativo da população e da produção, é a história ininterrupta da raridade que, a partir do século XIX, permite pensar o empobrecimento da História, sua inércia progressiva, sua petrificação e, dentro em breve, sua imobilidade rochosa.
Vê-se que papel a História e a antropologia desempenham uma em relação à outra. Só há história (trabalho, produção, acumulação e crescimento dos custos reais) na medida em que o homem como ser natural é finito: finitude que se prolonga muito além dos limites primitivos da espécie e das necessidades imediatas do corpo, mas que não cessa de acompanhar, ao menos em surdina, todo o desenvolvimento das civilizações.
Quanto mais o homem se instala no cerne do mundo, quanto mais avança na posse da natureza, tanto mais fortemente também é acossado pela finitude, tanto mais se aproxima de sua própria morte.
A História não permite ao homem evadir-se de seus limites iniciais – salvo na aparência e se se der ao limite o sentido mais superficial; se se considerar, porém, a finitude fundamental do homem, perceber-se-á que sua situação antropológica não cessa de dramatizar cada vez mais sua História, de torná-Ia mais perigosa e de aproximá-Ia, por assim dizer, de sua própria impossibilidade.
No momento em que toca tais confins, a História só pode deter-se, vibrar um instante sobre seu eixo e imobilizar-se para sempre.
Mas isso pode produzir-se de dois modos:
- seja porque ela alcance progressivamente, e com uma lentidão sempre mais acentuada, um estado de estabilidade que sanciona, no indefinido do tempo, aquilo para o que ela sempre marchou, aquilo que no fundo de si ela jamais cessou de ser desde o começo;
- seja porque, ao contrário, ela atinja um ponto de reversão onde só se fixa na medida em que suprime o que continuamente fora até então.
Na primeira solução (representada pelo “pessimismo” de Ricardo),
a História funciona ante as determinações antropológicas como uma espécie de grande mecanismo compensador;
- aloja-se, é certo, na finitude humana, mas aí aparece à maneira de uma figura positiva e em relevo;
- permite ao homem superar a raridade a que está votado.
Como essa carência se torna cada dia mais rigorosa, o trabalho se torna mais intenso;
- a produção aumenta em cifras absolutas,
- mas, ao mesmo tempo que ela e no mesmo movimento, também os custos de produção – isto é, as quantidades de trabalho necessário para produzir um mesmo objeto.
De sorte que deverá inevitavelmente chegar um momento em que o trabalho não é mais sustentado pela mercadoria que ele produz (não custando esta mais que o alimento do operário que a obtém).
A produção não pode mais preencher a falta.
Então,
- a raridade vai limitar-se ela própria (por uma estabilização demográfica)
- e o trabalho vai ajustar-se exatamente às necessidades (por uma repartição determinada das riquezas).
Doravante, a finitude e a produção vão superpor-se exatamente numa figura única. Todo labor suplementar seria inútil; todo excedente de população pereceria. A vida e a morte serão assim colocadas exatamente uma contra a outra, superfície contra superfície, imobilizadas e como que reforçadas ambas por seu impulso antagonista.
A História terá conduzido a finitude do homem até esse ponto-limite em que ela aparecerá enfim em sua pureza;
- já não terá margem que lhe permita escapar-se a si mesma, nem esforço a fazer para forjar um porvir, nem novas terras abertas a homens futuros;
- sob a grande erosão da História, o homem será pouco a pouco despojado de tudo o que pode escondê-lo a seus próprios olhos;
- terá exaurido todas essas possibilidades que confundem um pouco e esquivam sob as promessas do tempo sua nudez antropológica;
- por longos caminhos, mas inevitáveis e constringentes, a História terá conduzido o homem até essa verdade que o detém sobre si mesmo.
Na segunda solução (representada por Marx),
a relação da História com a finitude antropológica é decifrada segundo a direção inversa.
A História desempenha então um papel negativo:
- é ela, com efeito, que acentua as pressões da necessidade, que faz crescer as carências, coagindo os homens a trabalhar e a produzir sempre mais, sem receberem mais do que o que lhes é indispensável para viver, e algumas vezes um pouco menos.
- De sorte que, com o tempo, o produto do trabalho se acumula, escapando sem trégua àqueles que o executam:
- estes produzem infinitamente mais do que essa parte do valor que lhes cabe sob forma de salário
- e dão assim ao capital a possibilidade de novamente comprar trabalho.
Assim cresce sem cessar o número daqueles que a História mantém nos limites de suas condições de existência;
- e, por isso mesmo, essas condições não cessam de tomar-se mais precárias e de aproximar-se do que tornará a própria existência impossível;
- a acumulação do capital,
- o crescimento das empresas e de sua capacidade,
- a pressão constante sobre os salários,
- o excesso da produção
- reduzem o mercado de trabalho, diminuindo sua retribuição e aumentando o desemprego.
Repelida pela miséria aos confins da morte, toda uma classe de homens faz, como que a nu, a experiência do que sejam a necessidade, a fome e o trabalho.
- No que os outros atribuem à natureza ou à ordem espontânea das coisas,
- eles sabem reconhecer o resultado de uma história e a alienação de uma finitude que não tem essa forma.
É essa verdade da essência humana que eles podem, por essa razão – e que só eles podem – reassumir a fim de a restaurar. O que só poderá ser obtido pela supressão ou, ao menos, pela reversão da História tal como ela se desenrolou até o presente: somente então começará um tempo que não terá mais nem a mesma forma, nem as mesmas leis, nem a mesma forma de transcorrer.
Mas, sem dúvida, pouco importa a alternativa entre o “pessimismo” de Ricardo e a promessa revolucionária de Marx. Tal sistema de opções nada mais representa senão duas maneiras possíveis de percorrer as relações entre a antropologia e a História, tais como a economia as instaura através das noções de raridade e de trabalho.
Para Ricardo,
- a História preenche o vão disposto pela finitude antropológica e manifestado por uma perpétua carência,
- até o momento em que seja atingido o ponto de uma estabilização definitiva;
segundo a leitura marxista,
- a História, espoliando o homem de seu trabalho, faz surgir em relevo a forma positiva de sua finitude – sua verdade material enfim liberada.
Certamente, compreende-se sem dificuldade como, ao nível da opinião, as escolhas reais se distribuíram, porque alguns optaram pelo primeiro tipo de análise e outros pelo segundo.
Mas trata-se somente de diferenças derivadas que procedem em tudo e por tudo de uma inquirição e de um tratamento doxológicos.
No nível profundo do saber ocidental, o marxismo não introduziu nenhum corte real;
alojou-se sem dificuldade, como uma figura plena, tranquila, confortável e, reconheça-se, satisfatória por um tempo (o seu), no interior de uma disposição epistemológica que o acolheu favoravelmente (pois foi ela justamente que lhe deu lugar) e que ele não tinha, em troca, nem o propósito de perturbar nem sobretudo o poder de alterar, por pouco que fosse, pois que repousava inteiramente sobre ela.
O marxismo está no pensamento do século XIX como peixe n’ água: o que quer dizer que noutra parte qualquer deixa de respirar.
Se ele se opõe às teorias “burguesas” da economia e se, nessa oposição, projeta contra elas uma reversão radical da História, esse conflito e esse projeto têm por condição de possibilidade não a retomada de toda a História nas mãos, mas um acontecimento que toda a arqueologia pode situar com precisão e que prescreveu simultaneamente, segundo o mesmo modo, a economia burguesa e a economia revolucionária do século XIX.
Seus debates podem agitar algumas ondas e desenhar sulcos na superfície: são tempestades num copo d’ água. O essencial é que, no começo do século XIX, constituiu-se uma disposição do saber em que figuram, a um tempo,
- a historicidade da economia (em relação com as formas de produção),
- a finitude da existência humana (em relação com a raridade e o trabalho)
- e o aprazamento de um fim da História – quer por afrouxamento indevido quer por reversão radical.
História, antropologia e suspensão do devir se pertencem segundo uma figura que define para o pensamento do século XIX uma de suas redes maiores.
Sabe-se, por exemplo, que papel essa disposição desempenhou para reanimar a boa vontade fatigada dos humanismos; sabe-se de que modo fez renascer as utopias de um acabamento.
No pensamento clássico, a utopia funcionava antes como um devaneio de origem:
é que o frescor do mundo devia assegurar o desdobramento ideal de um quadro onde cada coisa estaria presente em seu lugar, com suas vizinhanças, suas diferenças próprias, suas equivalências imediatas;
nessa luz primeira, as representações não deviam ser ainda destacadas da viva, aguda e sensível presença daquilo que elas representam.
No século XIX, a utopia concerne ao crepúsculo do tempo mais que à sua aurora:
é que o saber não é mais constituído ao modo do quadro, mas ao da série, do encadeamento e do devir;
quando vier, com a noite prometida, a sombra do desenlace, a erosão lenta ou a violência da História fará realçar, em sua imobilidade rochosa, a verdade antropológica do homem;
o tempo dos calendários poderá certamente continuar;
mas será como que vazio, pois a historicidade se terá superposto exatamente à essência humana.
O escoar do devir, com todos os seus recursos de drama, de olvido, de alienação, será captado numa finitude antropológica que aí encontra em troca sua manifestação iluminada.
A finitude com sua verdade se dá no tempo; e, desde logo, o tempo é finito.
O grande devaneio de um termo da História é a utopia dos pensamentos causais,
como o sonho das origens era a utopia dos pensamentos classificadores.
Essa disposição foi por longo tempo constringente; e, no fim do século XIX, Nietzsche a fez cintilar uma última vez, incendiando-a.
Retomou o fim dos tempos para dele fazer a morte de Deus e a errância do último homem; retomou a finitude antropológica, mas para fazer fulgir o arremesso prodigioso do super-homem; retomou a grande cadeia contínua da História, mas para curvá-Ia no infinito do retorno.
A morte de Deus, a iminência do super-homem, a promessa e o terror do grande ano se esforçam em vão por retomar, como que termo a termo, os elementos que se dispõem no pensamento do século XIX e formam sua rede arqueológica, mas não é menos certo que inflamam todas essas formas estáveis, desenham com seus restos calcinados rostos estranhos, impossíveis talvez;
e, a uma luz de que não se sabe ainda ao certo
- se reaviva o último incêndio
- ou se indica a aurora,
vê-se abrir o que pode ser o espaço do pensamento contemporâneo.
Foi Nietzsche, em todo o caso, que queimou para nós, e antes mesmo que tivéssemos nascido, as promessas mescladas da dialética e da antropologia.