Capítulo VIII - Trabalho, vida e linguagem; tópico IV - Bopp

Franz Bopp (Mogúncia, 1791 — Berlim, 1867) foi um linguista alemão e professor de filologia e sânscrito na Universidade de Berlim.
Foi um dos principais criadores da gramática comparada, em Sobre o sistema de conjugação do sânscrito comparado aos das línguas grega, latina, persa e germânica (1816) demonstrou a afinidade genética que existe entre essas línguas, deduzindo os princípios gerais de sua formação.
Sua monumental Gramática comparada das línguas indo-europeias (1833–1852), traduzida para o francês por Michel Bréal, exerceu uma influência profunda.
“Mas o ponto decisivo que tudo aclarará
é a estrutura interna das línguas
ou a gramática comparada,
a qual nos dará soluções totalmente novas
sobre a genealogia das línguas,
da mesma forma como
a anatomia comparada
espargiu uma grande luz
sobre a história natural.”(30)
Schlegel bem o sabia: a constituição da historicidade na ordem da gramática fez-se segundo o mesmo modelo que na ciência dos seres vivos.
E, na verdade, nada há nisso de surpreendente, pois que, ao longo de toda a idade clássica, as palavras com que se pensava que as línguas eram compostas e os caracteres pelos quais se tentava constituir uma ordem natural, haviam recebido, identicamente, o mesmo estatuto:
- só existiam pelo valor representativo que detinham,
- bem como pelo poder de análise, de reduplicação, de composição e de ordenação
que se lhes reconhecia em relação às coisas representadas.
Com Jussieu e Lamarck primeiramente, com Cuvier em seguida, o caráter perdera sua função representativa, ou antes, se ele podia ainda “representar” e permitir o estabelecimento de relações de vizinhança ou de parentesco,
- não era pela virtude própria de sua estrutura visível
- nem dos elementos descritíveis de que era composto,
mas porque fora primeiro reportado a uma organização de conjunto e a uma função que ele assegura de maneira direta ou indireta, principal ou colateral, “primária” ou “secundária”.
No domínio da linguagem, a palavra sofre, mais ou menos na mesma época, uma transformação análoga:
- certamente, ela não deixa de ter um sentido e de poder “representar” alguma coisa no espírito de quem a utiliza ou a escuta;
- esse papel, porém, não é mais constitutivo da palavra no seu ser mesmo, na sua arquitetura essencial, no que lhe permite tomar lugar no interior de uma frase e aí ligar-se a outras palavras mais ou menos diferentes.
Se a palavra pode figurar num discurso em que ela quer dizer alguma coisa,
- não será por virtude de uma discursividade imediata que ela deteria propriamente e por direito de nascimento,
- mas porque na sua forma mesma, nas sonoridades que a compõem, nas mudanças que sofre segundo a função gramatical que ocupa, nas modificações enfim a que se acha sujeita através do tempo, obedece a certo número de leis estritas que regem de maneira semelhante todos os outros elementos da mesma língua;
- de sorte que a palavra só está vinculada a uma representação, na medida em que primeiramente faz parte da organização gramatical pela qual a língua define e assegura sua coerência própria.
Para que a palavra possa dizer o que ela diz, é preciso que pertença a uma totalidade gramatical que, em relação a ela, é primeira, fundamental e determinante.
Esse desnível da palavra, essa espécie de salto para trás, para fora das funções representativas, foi, certamente, por volta do fim do século XVIII, um dos acontecimentos importantes da cultura ocidental.
E um daqueles também que mais passaram despercebidos.
Facilmente se dirige a atenção para os primeiros momentos da economia política, para a análise de Ricardo sobre a renda fundiária e o custo da produção:
reconhece-se aqui que o acontecimento teve grandes dimensões, pois, pouco a pouco, ele não somente permitiu o desenvolvimento de uma ciência, como também acarretou certo número de mutações econômicas e políticas.
Tampouco se descuida demasiado das formas novas assumidas pelas ciências da natureza;
- e se é verdade que, por uma ilusão retrospectiva, valoriza-se Lamarck em detrimento de Cuvier,
- se é verdade que se percebe mal que a “vida” atinge pela primeira vez, com as Leçons d’anatomie comparée, seu limiar de positividade,
- tem-se, contudo, a consciência ao menos difusa de que a cultura ocidental começou a dirigir, desde aquele momento, um olhar novo sobre o mundo dos seres vivos.
Em contrapartida,
- o isolamento das línguas indo-européias,
- a constituição de uma gramática comparada,
- o estudo das flexões,
- a formação das leis de alternância vocálica e de mutação consonântica
- – em suma, toda a obra filológica de Grimm, de Schlegel, de Rask e de Bopp
permanece às margens de nossa consciência histórica, como se ela tivesse tão-somente fundado uma disciplina um pouco lateral e esotérica – como se, de fato, não fosse todo o modo de ser da linguagem (e da nossa) que se modificara através deles.
Sem dúvida, não se deve buscar justificar um tal esquecimento a despeito da importância da mudança, mas, ao contrário, a partir dela e da cega proximidade que esse acontecimento conserva sempre para nossos olhos mal desprendidos ainda de suas luzes costumeiras.
É que, na época mesma em que se produziu, já estava envolto, se não em segredo, ao menos numa certa discrição.
Talvez as mudanças no modo de ser da linguagem sejam como as alterações que afetam a pronúncia, a gramática ou a semântica:
- por mais rápidas que sejam, jamais são claramente apreendidas por aqueles que falam e cuja linguagem, no entanto, já veicula essas mutações;
- só se toma consciência delas de viés, por momentos;
- e, ademais, a decisão só é finalmente indicada de modo negativo:
- pelo desuso radical e imediatamente perceptível da linguagem que se empregava.
Sem dúvida, não é possível a uma cultura tomar consciência, de modo temático e positivo, de que sua linguagem cessa de ser transparente às suas representações para espessar-se e receber um peso próprio.
Quando se continua a discorrer, de que modo se saberia – senão através de alguns indícios obscuros que se interpretam com dificuldade e mal – que a linguagem (aquela mesma de que se serve) está em via de adquirir uma dimensão irredutível à pura discursividade?
Por todas essas razões, certamente, o nascimento da filologia permaneceu, na consciência ocidental, muito mais discreto que o da biologia e da economia política.
Contudo, fazia parte da mesma transmutação arqueológica.
Contudo, suas consequências talvez se tenham estendido muito mais longe ainda em nossa cultura, pelo menos nas camadas subterrâneas que a percorrem e a sustentam.
Como se formou essa positividade filológica?
Quatro segmentos teóricos nos assinalam sua constituição no começo do século XIX
– na época do Ensaio sobre a língua e a filosofia dos indianos de Schlegel (1808), da Deutsche Grammatik de Grimm (1818) e do livro de Bopp sobre o Sistema de conjugação do sânscrito (1816).
1. O primeiro desses segmentos concerne à maneira como uma língua pode caracterizar-se internamente
e distinguir-se das outras.
Na época clássica, podia-se definir a individualidade de uma língua a partir de vários critérios:
- proporção entre os diferentes sons utilizados para formar palavras (há línguas de predominância vocálica e outras de predominância consonântica),
- privilégio concedido a certas categorias de palavras (línguas de substantivos concretos, línguas de substantivos abstratos etc.),
- maneira de representar as relações (por preposições ou por declinações),
- disposição escolhida para colocar as palavras em ordem (quer se coloque de início, como os franceses, o sujeito lógico, quer se dê a primazia às palavras mais importantes, como em latim);
assim se distinguiam
- as línguas do Norte e as do Sul,
- as do sentimento e as da necessidade,
- as da liberdade e as da escravatura,
- as da barbárie e as da civilização,
- as do raciocínio lógico e as da argumentação retórica:
todas essas distinções entre as línguas nunca concerniam mais que à maneira como elas podiam analisar a representação e, em seguida, compor seus elementos.
Mas, a partir de Schlegel, as línguas, ao menos na sua tipologia mais geral, se definem pela maneira como ligam uns aos outros os elementos propriamente verbais que a compõem;
- entre esses elementos, alguns certamente são representativos;
- possuem, em todo o caso, um valor de representação que é visível;
- mas outros não detêm nenhum sentido e servem somente, por uma certa composição, para determinar o sentido de um outro elemento na unidade do discurso.
É esse material feito de nomes, de verbos, de palavras em geral, mas também de sílabas, de sons – que as línguas reúnem para formar proposições e frases.
Mas a unidade material constituída pela disposição dos sons, das sílabas e das palavras não é regida pela pura e simples combinatória dos elementos da representação.
Ela tem seus princípios próprios e que diferem nas diversas línguas: a composição gramatical tem regularidades que não são transparentes à significação do discurso.
Ora, como a significação pode passar, quase integralmente, de uma língua para outra, são essas regularidades que vão permitir definir a individualidade de uma língua.
Cada uma tem um espaço gramatical autônomo; podem-se comparar esses espaços lateralmente, isto é, de uma língua para outra, sem ter de passar por um “meio” comum que seria o campo da representação com todas as suas subdivisões possíveis.
É fácil distinguir, de imediato, dois grandes modos de combinação entre os elementos gramaticais.
Um consiste em justapô-los de maneira que eles se determinem uns aos outros;
nesse caso, a língua é feita de uma poeira de elementos – em geral muito sucintos – que podem combinar-se de diferentes maneiras, cada uma dessas unidades guardando, porém, sua autonomia, a possibilidade, portanto, de romper o liame transitório que, no interior de uma frase ou de uma proposição, ela acaba de instaurar com uma outra.
A língua se define então pelo número de suas unidades e por todas as combinações possíveis que podem, no discurso, estabelecer-se entre elas; trata-se então de uma “reunião de átomos”, de uma “agregação mecânica operada por uma aproximação exterior”(31).
Existe outro modo de ligação entre os elementos de uma língua: é o sistema de flexões que altera internamente as sílabas ou as palavras essenciais – as formas radicais.
Cada uma dessas formas carrega consigo certo número de variações possíveis, determinadas de antemão; e, conforme as outras palavras da frase, conforme as relações de dependência ou de correlação entre essas palavras, conforme as vizinhanças e as associações, será utilizada esta ou aquela variável.
Aparentemente, esse modo de ligação é menos rico que o primeiro, pois que o número das possibilidades combinatórias é muito mais restrito;
- na realidade, porém, o sistema da flexão jamais existe sob sua forma pura e mais descarnada;
- a modificação interna do radical lhe permite receber por adição elementos que são, eles próprios, modificáveis interiormente, de sorte que, “cada raiz é verdadeiramente uma espécie de gérmen vivo;
- pois as relações sendo indicadas por uma modificação interior e sendo dado um livre campo ao desenvolvimento da palavra, esta palavra pode estender-se de maneira ilimitada”(32).
A esses dois grandes tipos de organização linguística correspondem,
- por um lado, o chinês, em que “as partículas que designam as idéias sucessivas são monossílabos, tendo sua existência à parte”
- e, de outro, o sânscrito, cuja “estrutura é completamente orgânica, ramificando-se, por assim dizer, com a ajuda de flexões, de modificações interiores e de entrelaçamentos variados do radical”(33).
Entre esses modelos maiores e extremos, podem se repartir todas as outras línguas, quaisquer que sejam; cada uma terá necessariamente uma organização que a aproximará de um dos dois, ou que a manterá a igual distância, no meio do campo assim definido.
- Mais próximas do chinês, encontram-se o basco, o copta, as línguas americanas; elas ligam, uns aos outros, elementos separáveis; mas estes, em vez de permanecerem sempre em estado livre e como átomos verbais irredutíveis, “começam já a fundir-se na palavra”;
- o árabe se define por uma mistura entre o sistema das afixações e o das flexões;
- o celta é quase exclusivamente uma língua de flexão, mas nele se encontram ainda “vestígios de línguas afixas”.
Dir-se-á talvez que essa oposição já era conhecida no século XVIII e que se sabia desde muito tempo distinguir a combinatória das palavras chinesas nas declinações e conjugações de línguas como o latim e o grego.
Objetar-se-á também que a oposição absoluta estabelecida por Schlegel não tardou a ser criticada por Bopp:
- lá onde Schlegel via dois tipos de línguas radicalmente inassimiláveis uma à outra,
- Bopp buscou uma origem comum; tenta estabelecer(34) que as flexões não são uma espécie de desenvolvimento interior e espontâneo do elemento primitivo, mas partículas que se aglomeraram à sílaba radical: o m da primeira pessoa em sânscrito (bhavâmi) ou o t da terceira (bhavâti) são efeito da adjunção do radical do verbo do pronome mâm (eu) e tâm (ele).
Mas o importante para a constituição da filologia não está tanto em saber se os elementos da conjugação puderam beneficiar-se, num passado mais ou menos longínquo, de uma existência isolada com um valor autônomo.
O essencial, e o que distingue as análises de Schlegel e de Bopp daquelas que, no século XVIII, podem aparentemente antecipar-se a elas(35) é que as sílabas primitivas não crescem (por adjunção ou proliferação internas) sem um certo número de modificações reguladas no radical.
- Numa língua como o chinês, há apenas leis de justaposição;
- mas em línguas em que os radicais estão sujeitos ao crescimento (quer sejam monossilábicos como no sânscrito ou polissilábicos como no hebraico),
- encontram-se sempre formas regulares de variações internas.
Compreende-se que a nova filologia, tendo agora para caracterizar as línguas esses critérios de organização interior, haja abandonado as classificações hierárquicas que o século XVIII praticava:
- admitia-se então que havia línguas mais importantes que outras porque nelas a análise das representações era mais precisa ou mais fina.
Doravante todas as línguas se equivalem: elas têm somente organizações internas que são diferentes. Daí essa curiosidade por línguas raras, pouco faladas, mal “civilizadas”, de que Rask deu o testemunho na sua grande investigação através da Escandinávia, da Rússia, do Cáucaso, da Pérsia e da Índia.
2. O estudo dessas variações internas constitui o segundo segmento teórico importante.
Nas suas pesquisas etimológicas, a gramática geral estudava, é certo, as transformações das palavras e das sílabas através do tempo.
Mas esse estudo era limitado por três razões.
- lncidia mais sobre a metamorfose das letras do alfabeto do que sobre a maneira como os sons efetivamente pronunciados podiam ser modificados. Ademais, essas transformações eram consideradas como o efeito sempre possível, em qualquer tempo e sob todas as condições, de uma certa afinidade das letras entre si;
- admitia-se que o p e o b, o m e o n eram bastante vizinhos para que um pudesse substituir o outro; tais mudanças eram provocadas ou determinadas somente por essa duvidosa proximidade e pela confusão que podia seguir-se na pronúncia ou na audição.
- Enfim, as vogais eram tratadas como o elemento mais fluido e mais instável da linguagem, ao passo que as consoantes passavam por formar sua arquitetura sólida (o hebraico, por exemplo, não dispensa a escrita das vogais?).
Pela primeira vez, com Rask, Grimm e Bopp, a linguagem (embora não se busque reconduzi-Ia aos seus gritos originários) é tratada como um conjunto de elementos fonéticos.
Enquanto, para a gramática geral, a linguagem nascia quando o ruído da boca ou dos lábios se tornava letra,
doravante admite-se que há linguagem quando esses ruídos são articulados e divididos numa série de sons distintos.
Todo o ser da linguagem é agora sonoro.
O que explica o interesse novo, manifestado pelos irmãos Grimm e por Raynouard, pela literatura não-escrita, as narrativas populares e os dialetos falados. Procura-se a linguagem o mais perto possível do que ela é: na fala – essa fala que a escrita desseca e imobiliza num lugar.
Toda uma mística está em via de nascer: a do verbo, do puro fulgor poético que passa sem rastro, deixando atrás de si apenas uma vibração suspensa por um instante. Na sua sonoridade passageira e profunda, a fala se torna soberana. E seus secretos poderes, reanimados pelo sopro dos profetas, opõem-se fundamentalmente (ainda que tolerem alguns entrecruzamentos) ao esoterismo da escrita que, por seu lado, supõe a permanência ressequida de um segredo no centro de labirintos visíveis.
A linguagem já não é propriamente esse signo – mais ou menos longínquo, semelhante e arbitrário – ao qual a Lógica de Port-Royal propunha, como modelo imediato e evidente, o retrato de um homem ou um mapa geográfico.
Adquiriu uma natureza vibratória que a destaca do signo visível para aproximá-Ia da nota musical.
E foi preciso justamente que Saussure contornasse esse momento da fala, que foi capital para toda a filologia do século XIX, para restaurar, para além das formas históricas, a dimensão da língua em geral e reabrir, acima de tanto esquecimento, o velho problema do signo que animara, sem interrupção, todo o pensamento desde Port-Royal até os últimos ideólogos.
No século XIX começa, pois, uma análise da linguagem tratada como um conjunto de sons liberados das letras que os podem transcrever(36).
Ela foi feita em três direções.
[i] Primeiro a tipologia das diversas sonoridades que são utilizadas numa língua:
para as vogais, por exemplo, oposição entre as simples e as duplas (alongadas como em â, ô; ou ditongadas como em ae, ai); entre as vogais simples, oposição entre as puras (a, i, o, u) e as flexionadas (e, õ, ü); entre as puras, há as que podem ter várias pronúncias (como o o) e as que só têm uma (a, i, u); enfim, entre estas últimas, umas estão sujeitas à mudança e podem receber o Um/ Qui (a eu); quanto ao i, permanece sempre fixo(37).
[ii] A segunda forma de análise incide sobre as condições que podem determinar uma mudança numa sonoridade;
- seu lugar no vocábulo é, em si mesmo, um fator importante: uma sílaba, se for terminal, protege menos facilmente sua permanência do que se constituir a raiz;
- as letras do radical, diz Grimm, têm vida longa; as sonoridades da desinência têm uma vida mais curta.
Mas, além disso, há determinações positivas, pois “a manutenção ou a mudança” de uma sonoridade qualquer “não é jamais arbitrária”(38). Essa ausência de arbitrário era para Grimm a determinação de um sentido (no radical de um grande número de verbos alemães o a se opõe ao i como o pretérito ao presente).
Para Bopp, ela é o efeito de um certo número de leis. Umas definem as regras de mudança quando duas consoantes se acham em contato:
“Assim, quando se diz em sânscrito ai-ti (ele come) no lugar de ad-ti (da raiz ad, comer), a mudança d e t tem por causa uma lei física.”
Outras definem o modo de ação de uma terminação sobre as sonoridades do radical:
“Por leis mecânicas, entendo principalmente as leis do peso e, em particular, a influência que o peso das desinências pessoais exerce sobre a sílaba precedente.”(39)
[iii] Finalmente, a última forma de análise incide sobre a constância das transformações através da História.
Grimm estabeleceu assim uma tabela de correspondência para as labiais, as dentais e as guturais entre o grego, o “gótico” e o alto-alemão: o p, o b, o f dos gregos tornam-se respectivamente f,p, b em gótico e b ou v, f e p em alto-alemão; t, d, th, em grego, tomam-se, em gótico, th, t, d, e, em alto-alemão, d, z, t.
Por esse conjunto de relações, os caminhos da história se acham prescritos; e, em vez de as línguas serem submetidas a essa medida exterior, a essas coisas da história humana que deviam, para o pensamento clássico, explicar suas mudanças, detêm elas próprias um princípio de evolução.
Aí, como alhures, é a “anatomia”(40) que fixa o destino.
3. Essa definição de uma lei das modificações consonânticas ou vocálicas permite estabelecer uma teoria nova do radical.
Na época clássica, as raízes eram assinaladas por um duplo sistema de constantes:
- as constantes alfabéticas que incidiam sobre um número arbitrário de letras (em certos casos, só havia uma)
- e as constantes significativas, que reagrupavam sob um tema geral uma quantidade indefinidamente extensível de sentidos vizinhos;
no cruzamento dessas duas constantes, lá onde um mesmo sentido vinha à luz por uma mesma letra ou uma mesma sílaba, individualizava-se uma raiz.
A raiz era um núcleo expressivo transformável ao infinito a partir de uma sonoridade primeira.
Mas se vogais e consoantes só se transformam segundo certas leis e sob certas condições, então o radical deve ser uma individualidade linguística estável (dentro de certos limites), que se pode isolar com suas variações eventuais e que constitui com suas diferentes formas possíveis um elemento de linguagem.
Para determinar os elementos primeiros e absolutamente simples de uma língua, a gramática geral devia ascender até o ponto de contato imaginário onde o som, não ainda verbal, tocava de certo modo na vivacidade mesma da representação.
Doravante, os elementos de uma língua lhe são interiores (mesmo se pertencem também às outras): existem meios puramente linguísticos para estabelecer sua composição constante e a tabela de suas modificações possíveis.
A etimologia, portanto, vai deixar de ser um procedimento indefinidamente regressivo em direção a uma língua primitiva, toda povoada pelos primeiros gritos da natureza; torna-se um método de análise preciso e limitado para reencontrar numa palavra o radical a partir do qual ela foi formada:
“As raízes das palavras só foram postas em evidência após o sucesso da análise das flexões e das derivações.”(41)
- Pode-se assim estabelecer que, em certas línguas como as semíticas, as raízes são bissilábicas (em geral de três letras);
- que noutras (as indo-germânicas) são regularmente monossilábicas;
- algumas são constituídas por uma só e única vogal (i é o radical dos verbos que querem dizer ir, u dos que significam repercutir);
- mas, a maior parte do tempo, a raiz nessas línguas comporta ao menos uma consoante e uma vogal – a consoante podendo ser terminal ou inicial;
- no primeiro caso, a vogal é necessariamente inicial;
- no outro caso, ocorre ser ela seguida por uma segunda consoante que lhe serve de apoio (como na raiz ma, mad, que dá em latim metiri, em alemão messen(42).
- Também ocorre que essas raízes monossilábicas sejam redobradas, como do se redobra no sânscrito dadami, e o grego didômi, ou sta em tishtami e istémi(43).
Finalmente e sobretudo, a natureza da raiz e seu papel constituinte na linguagem são concebidos de um modo absolutamente novo:
no século XVIII, a raiz era um nome rudimentar que designava, em sua origem, uma coisa concreta, uma representação imediata, um objeto que se oferecia ao olhar ou a qualquer um dos sentidos.
- A linguagem se construía a partir do jogo de suas caracterizações nominais;
- a derivação estendia seu alcance;
- a abstração fazia nascer os adjetivos;
- e bastava então acrescentar a estes o outro elemento irredutível, a grande função monótona do verbo ser, para que se constituísse a categoria das palavras conjugáveis – espécie de condensação numa forma verbal do ser e do epíteto.
Também Bopp admite que os verbos são mistos, obtidos pela coagulação do verbo com uma raiz.
Mas sua análise difere, em vários pontos essenciais, do esquema clássico:
- não se trata da adição virtual, subjacente e invisível da função atributiva e do sentido proposicional que se empresta ao verbo ser;
- trata-se primeiramente de uma junção material entre um radical e as formas do verbo ser:
- o as sânscrito se reencontra no sigma do aoristo grego, no er, do mais-que-perfeito ou do futuro anterior latino;
- o bhu sânscrito se encontra no b do futuro e do imperfeito latinos.
Ademais, essa adjunção do verbo ser permite essencialmente atribuir ao radical um tempo e uma pessoa (a desinência constituída pelo radical do verbo ser comportando, além disso, aquele do pronome pessoal, como em script-s-i(44))
Por conseguinte, não é a adjunção de ser que transforma um epíteto em verbo; o próprio radical detém uma significação verbal, à qual as desinências derivadas da conjugação de ser acrescentam somente modificações de pessoas de tempo.
Portanto, as raízes dos verbos não designam na origem “coisas”, mas ações, processos, desejos, vontades; e são elas que, recebendo certas desinências provindas do verbo ser e dos pronomes pessoais, tornam-se suscetíveis de conjugação, ao passo que, recebendo outros sufixos, eles próprios modificáveis, elas se tornarão nomes suscetíveis de declinação.
À bipolaridade nomes-verbo ser, que caracterizava a análise clássica, é preciso, pois, substituir uma disposição mais complexa:
raízes de significação verbal, que podem receber desinências de tipos diferentes e assim dar nascimento a verbos conjugáveis ou a substantivos.
Os verbos (e os pronomes pessoais) tornam-se assim o elemento primordial da linguagem – aquele a partir do qual ela pode desenvolver-se.
“O verbo e os pronomes pessoais parecem ser as verdadeiras alavancas da linguagem.”(45)
As análises de Bopp deviam ter uma importância capital não somente para a decomposição interna de uma língua, mas ainda para definir o que pode ser a linguagem em sua essência.
- Ela não é mais um sistema de representações que tem poder de recortar e de recompor outras representações;
- designa, em suas raízes mais constantes, ações, estados, vontades;
- mais do que o que se vê, pretende dizer originariamente o que se faz ou o que se sofre;
- e, se acaba por mostrar as coisas como que as apontando com o dedo, é na medida em que elas são o resultado, ou o objeto, ou o instrumento dessa ação;
- os nomes não recortam tanto o quadro complexo de uma representação;
- recortam, detêm e imobilizam o processo de uma ação.
A linguagem “enraíza-se”
- não do lado das coisas percebidas,
- mas do lado do sujeito em sua atividade.
E talvez seja ela então proveniente do querer e da força, mais do que dessa memória que reduplica a representação. Fala-se porque se age e não porque, reconhecendo, se conhece. Como a ação, a linguagem exprime uma vontade profunda.
O que tem duas conseqüências.
A primeira é paradoxal para um olhar apressado:
é que, no momento em que a filologia se constitui pela descoberta de uma dimensão da gramática pura, volta-se a atribuir à linguagem profundos poderes de expressão (Humboldt não é apenas contemporâneo de Bopp; conhecia sua obra e detalhadamente):
- enquanto na época clássica a função expressiva da linguagem só era requerida no ponto de origem e apenas para explicar que um som pudesse representar uma coisa,
- no século XIX, a linguagem vai ter, ao longo de todo o seu percurso e nas suas formas mais complexas, um valor expressivo que é irredutível;
- nada de arbitrário, nenhuma convenção gramatical podem obliterá-la, pois, se a linguagem exprime,
- não o faz na medida em que imite e reduplique as coisas,
- mas na medida em que manifesta e traduz o querer fundamental daqueles que falam.
A segunda conseqüência consiste em que
- a linguagem não está mais ligada às civilizações pelo nível de conhecimentos que elas atingiram (a finura da rede representativa, a multiplicidade dos liames que se podem estabelecer entre os elementos),
- mas pelo espírito do povo que as fez nascer, as anima e se pode reconhecer nelas.
Assim como o organismo vivo manifesta, por sua coerência, as funções que o mantêm em vida, a linguagem, e isso em toda a arquitetura de sua gramática, torna visível a vontade fundamental que mantém um povo em vida e lhe dá o poder de falar uma linguagem que só a ele pertence.
Desde logo, as condições de historicidade da linguagem são modificadas;
- as mutações não vêm mais do alto (da elite dos sábios, do pequeno grupo de mercadores e viajantes, dos exércitos vitoriosos, da aristocracia de invasão),
- mas nascem obscuramente de baixo, pois a linguagem não é um instrumento, ou um produto – um ergon, como dizia Humboldt – mas uma incessante atividade – uma energeia.
Numa língua, quem fala e não cessa de falar, num murmúrio que não se ouve mas de onde vem, no entanto, todo o esplendor, é o povo.
Grimm pensava surpreender esse murmúrio escutando o altdeutsche Meistergesang, e Raynouard, transcrevendo as Poésies originales des troubadours.
A linguagem está ligada
- não mais ao conhecimento das coisas,
- mas à liberdade dos homens:
“A linguagem é humana: à nossa plena liberdade deve sua origem e seus progressos; ela é nossa história, nossa herança.”(46)
No momento em que se definem as leis internas da gramática, estabelece-se um profundo parentesco entre a linguagem e o livre destino dos homens.
Ao longo de todo o século XIX, a filologia terá profundas ressonâncias políticas.
4. A análise das raízes tornou possível uma nova definição dos sistemas de parentesco entre as línguas.
E é este o quarto grande segmento teórico que caracteriza o aparecimento da filologia.
Essa definição supõe, primeiramente, que as línguas se agrupem em conjuntos descontínuos uns em relação aos outros.
A gramática geral excluía a comparação na medida em que admitia em todas as línguas, quaisquer que fossem, duas ordens de continuidade;
- uma, vertical, permitia-lhes, a todas, dispor do acervo das raízes mais primitivas que, através de algumas transformações, religava cada linguagem às articulações iniciais;
- outra, horizontal, fazia as línguas se comunicarem na universalidade da representação:
todas elas tinham de analisar, decompor e recompor representações que, em limites bastante amplos, eram as mesmas para o gênero humano inteiro.
De sorte que não era possível comparar as línguas, salvo de um modo indireto, e como que por um trajeto triangular;
- podia-se analisar a maneira como esta e aquela língua haviam tratado e modificado o equipamento comum das raízes primitivas;
- podia-se também comparar como duas línguas recortavam e religavam as mesmas representações.
Ora, o que se tornou possível, a partir de Grimm e de Bopp, foi a comparação
- direta
- e lateral
de duas ou várias línguas.
- Comparação direta
por não ser mais necessário passar pelas representações puras ou pela raiz absolutamente primitiva:
-
- basta estudar as modificações do radical,
- o sistema das flexões,
- a série das desinências.
- Mas comparação lateral,
que não ascende aos elementos comuns a todas as línguas, nem ao fundo representativo no qual se nutrem:
-
- não é portanto possível reportar uma língua à forma ou aos princípios que tornam todas as outras possíveis;
- é preciso agrupá-Ias segundo sua proximidade formal:
“A semelhança se acha não somente no grande número de raízes comuns, mas se estende ainda até a estrutura interior das línguas e até a gramática.”(47)
Ora, essas estruturas gramaticais, que podem ser comparadas diretamente entre si, oferecem dois caracteres particulares.
Primeiro, o de só existirem em sistemas:
- com radicais monossilábicos,
- um certo número de flexões é possível;
- o peso das desinências pode ter efeitos cujo número e natureza são determináveis;
- os modos de afixação correspondem a alguns modelos perfeitamente fixos;
- já nas línguas de radicais polissilábicos,
- todas as modificações e composições obedecerão a outras leis.
Entre dois sistemas como esses (um, característico das línguas indo-europeias, outro, das línguas semíticas), não se encontra tipo intermediário nem formas de transição.
De uma família a outra há descontinuidade.
Por outro lado, porém, os sistemas gramaticais, já que prescrevem certo número de leis de evolução e de mutação, permitem fixar até certo ponto o índice de envelhecimento de uma língua; para que tal forma aparecesse a partir de certo radical, foi necessária tal ou qual transformação.
Na idade clássica, quando duas línguas se assemelhavam, era preciso
- ou vincular ambas à língua absolutamente primitiva,
- ou então admitir que uma provinha da outra (mas o critério era externo, a língua mais derivada sendo muito simplesmente a que tivesse aparecido na história em data mais recente),
- ou ainda admitir permutas (devidas a acontecimentos extralinguísticos: invasão, comércio, migração).
Agora, quando duas línguas apresentam sistemas análogos, deve-se poder decidir
- ou que uma é derivada da outra,
- ou ainda que são ambas provenientes de uma terceira, a partir da qual cada uma delas desenvolveu sistemas
- diferentes por um lado,
- mas também análogos por outro.
Foi assim que, a propósito do sânscrito e do grego, abandonou-se sucessivamente
- a hipótese de Coeurdoux, que acreditava em vestígios da língua primitiva,
- e a de Anquetil, que supunha uma mistura na época do reino de Bactriana;
- e Bopp pôde também refutar Schlegel, para quem “a língua indiana era a mais antiga, e as outras (latim, grego, línguas germânicas e persas) eram mais modernas e derivadas da primeira(48).
Mostrou ele que, entre o sânscrito, o latim e o grego, as línguas germânicas, havia uma relação de “fraternidade”, sendo o sânscrito não a língua mãe das outras, mas antes a irmã primogênita, a mais próxima de uma língua que teria estado na origem de toda essa família.
Vê-se que a historicidade introduziu-se no domínio das línguas como no dos seres vivos.
Para que uma evolução – que não fosse somente percurso de continuidades ontológicas – pudesse ser pensada, foi necessário
- que o plano ininterrupto e liso da história natural fosse quebrado,
- que a descontinuidade das ramificações fizesse aparecer os planos de organização na sua diversidade sem intermediário,
- que os organismos se ordenassem às disposições funcionais que eles devem assegurar
- e que se estabelecessem assim as relações do ser vivo com o que lhe permite existir.
Da mesma forma, foi preciso, para que a história das línguas pudesse ser pensada,
- que elas fossem destacadas dessa grande continuidade cronológica que as religava sem ruptura até a origem;
- foi preciso também liberá-Ias da superfície comum das representações onde estavam presas;
- graças a essa dupla ruptura, a heterogeneidade dos sistemas gramaticais apareceu com seus recortes próprios, as leis que em cada um prescrevem a mudança e os caminhos que fixam as possibilidades da evolução.
Uma vez suspensa a história das espécies como sequência cronológica de todas as formas possíveis, então, e somente então, o ser vivo pôde receber uma historicidade;
do mesmo modo, se não se tivesse suspendido, na ordem da linguagem, a análise dessas derivações indefinidas e dessas misturas sem limites que a gramática geral supunha sempre, a linguagem jamais teria sido afetada por uma historicidade interna.
Foi preciso tratar o sânscrito, o grego, o latim, o alemão numa simultaneidade sistemática; rompendo com toda cronologia, foi mister instalá-los num tempo fraternal, para que suas estruturas se tornassem transparentes e para que aí se pudesse ler uma história das línguas.
Aqui como alhures, as colocações em série cronológica tiveram de ser apagadas, seus elementos redistribuídos, e constituiu-se então uma história nova, que enuncia não somente o modo de sucessão dos seres e seu encadeamento no tempo, mas as modalidades de sua formação.
A empiricidade –
- trata-se tanto dos indivíduos naturais
- quanto das palavras com que podem ser nomeados
– está doravante atravessada pela História e em toda a espessura de seu ser.
A ordem do tempo começa.
Há, entretanto, uma diferença capital entre as línguas e os seres vivos.
Estes só têm história verdadeira por uma certa relação entre suas funções e suas condições de existência. E se é verdade que é sua composição interna de indivíduos organizados que torna possível sua historicidade, esta só se torna história real em virtude desse mundo exterior em que eles vivem. Foi necessário portanto, para que essa história aparecesse em plena luz e fosse descrita num discurso, que à anatomia comparada de Cuvier se acrescentasse a análise do meio ambiente e das condições que agem sobre o ser vivo.
A “anatomia” da linguagem, para retomar a expressão de Grimm, funciona, em contrapartida, no elemento da História: pois é uma anatomia das mudanças possíveis que anuncia, não a coexistência real dos órgãos ou sua mútua exclusão, mas o sentido no qual as mutações poderão ou não se dar.
A nova gramática é imediatamente diacrônica. Como poderia ser de outro modo, já que sua positividade não podia ser instaurada senão por uma ruptura entre a linguagem e a representação?
A organização interior das línguas, o que elas autorizam e o que elas excluem para poder funcionar, isso não podia mais ser apreendido senão na forma das palavras; mas, em si mesma, essa forma só pode enunciar sua própria lei quando reportada a seus estados anteriores, às mudanças de que é suscetível, às modificações que jamais se produzem.
Ao ser separada daquilo que ela representa, a linguagem certamente aparecia, pela primeira vez, na sua legalidade própria, e, no mesmo movimento, ficava-se votado a só poder apreendê-Ia na história.
Sabe-se bem que Saussure só pôde escapar a essa vocação diacrônica da filologia, restaurando a relação da linguagem com a representação, disposto a reconstituir uma “semiologia” que, à maneira da gramática geral, define o signo pela ligação entre duas idéias.
O mesmo acontecimento arqueológico manifestou-se, pois, de modo parcialmente diferente para a história natural e para a linguagem.
Destacando-se
- os caracteres do ser vivo
- ou as regras da gramática
das leis de uma representação que se analisa, tornou-se possível a historicidade da vida e da linguagem.
Mas essa historicidade, na ordem da biologia, teve necessidade de uma história suplementar que devia enunciar as relações entre o indivíduo e o meio ambiente;
- em certo sentido, a história da vida
- é exterior à historicidade do ser vivo;
é por isso que o evolucionismo constitui uma teoria biológica cuja condição de possibilidade foi uma biologia sem evolução – a de Cuvier.
A historicidade da linguagem, ao contrário, descobre, desde logo e sem intermediário, sua história; comunicam-se interiormente uma com a outra.
- Enquanto a biologia do século XIX avançará cada vez mais em direção ao exterior do ser vivo, ao seu outro lado, tornando sempre mais permeável essa superfície do corpo em que o olhar do naturalista outrora se detinha,
- a filologia desfará as relações que o gramático estabelecera entre a linguagem e a história externa para definir uma história interior.
E esta, uma vez assegurada na sua objetividade, poderá servir de fio condutor para reconstituir, em proveito da História propriamente dita, acontecimentos afastados de toda memória.