Psicanálise e etnologia – APC

V. Psicanálise, etnologia

[da psicanálise]

“A psicanálise e a etnologia ocupam, no nosso saber, um lugar privilegiado. 

Não certamente 

  • porque teriam, melhor que qualquer outra ciência humana, embasado sua positividade e realizado enfim o velho projeto de serem verdadeiramente científicas; 

antes porque, 

  • nos confins de todos os conhecimentos sobre o homem, elas formam seguramente um tesouro inesgotável de experiências e de conceitos, mas, sobretudo, um perpétuo princípio de inquietude, de questionamento, de crítica e de contestação daquilo que, por outro lado, pôde parecer adquirido. 

Ora, há para isto uma razão que tem a ver com o objeto que respectivamente cada uma se atribui, mas tem mais ainda a ver com a posição que ocupam e com a função que exercem no espaço geral da epistémê. 

A psicanálise, com efeito, mantém-se o mais próximo possível desta função crítica acerca da qual se viu que era interior a todas as ciências humanas.

Dando-se por tarefa fazer falar através da consciência o discurso do inconsciente, 

a psicanálise avança na direção desta região fundamental onde se travam as relações entre a representação e a finitude. 

Enquanto todas as ciências humanas

  •  só se dirigem ao inconsciente virando-lhe as costas, esperando que ele se desvele à medida que se faz, como que por recuos, a análise da consciência, 

já a psicanálise 

  • aponta diretamente para ele, de propósito deliberado – 
    • não em direção ao que deve explicitar-se pouco a pouco na iluminação progressiva do implícito, 
    • mas em direção ao que está aí e se furta, que existe com a solidez muda de uma coisa, de um texto fechado sobre si mesmo, ou de uma lacuna branca num texto visível e que assim se defende. 

Não há que supor que o empenho freudiano seja o componente de uma interpretação do sentido e de uma dinâmica da resistência ou da barreira; 

  • seguindo o mesmo caminho que as ciências humanas, 

mas com o olhar voltado em sentido contrário, 

  • a psicanálise se encaminha 

em direção ao momento –inacessível, por definição, a todo conhecimento teórico do homem, a toda apreensão contínua em termos 

        • de significação
        • de conflito 
        • ou de função

– em que os conteúdos da consciência se articulam com,
ou antes, ficam abertos para a finitude do homem. 

Isto quer dizer que, 

  • ao contrário das ciências humanas que, 
    • retrocedendo embora em direção ao inconsciente, 
      • permanecem sempre no espaço do representável, 
  • a psicanálise 
    • avança para transpor a representação, extravasá-la do lado da finitude
    • e fazer assim surgir, lá onde se esperavam 
      • as funções portadoras de suas normas
      • os conflitos carregados de regras 
      • e as significações formando sistema
    • o fato nu de que pode haver 
      • sistema (portanto, significação), 
      • regra (portanto, oposição), 
      • norma (portanto, função). 

E, nessa região onde a representação fica em suspenso, à margem dela mesma, aberta, de certo modo ao fechamento da finitude, desenham-se as três figuras pelas quais 

  • a vida, com suas funções e suas normas, vem fundar-se na repetição muda da Morte, 
  • os conflitos e as regras, na abertura desnudada do Desejo, 
  • as significações e os sistemas, numa linguagem que é ao mesmo tempo Lei. “

[a etnologia)]

Sabe-se como psicólogos e filósofos denominaram tudo isso: mitologia freudiana. 

Era realmente necessário que este empenho de Freud assim lhes parecesse; 

  • para um saber que se aloja no representável, 
  • aquilo que margeia e define, em direção ao exterior, a possibilidade mesma da representação 
  • não pode ser senão mitologia. 

Mas, quando se segue, no seu curso, o movimento da psicanálise, ou quando se percorre o espaço epistemológico em seu conjunto, vê-se bem que estas figuras – imaginárias, sem dúvida, para um olhar míope – são as próprias formas da finitude, tal como é analisada no pensamento moderno: 

não é a morte aquilo a partir de que o saber em geral é possível de sorte tal que ela seria, do lado da psicanálise, a figura desta reduplicação empírico-transcendental que caracteriza na finitude o modo de ser do homem? 

Não é o desejo o que permanece sempre impensado no coração do pensamento? 

E esta Lei-Linguagem (ao mesmo tempo fala e sistema da fala) que a psicanálise se esforça por fazer falar, não é aquilo em que toda significação assume uma origem mais longínqua que ela mesma, mas também aquilo cujo retorno é prometido no ato mesmo da análise? 

É bem verdade que nem esta Morte, nem este Desejo, nem esta Lei podem jamais encontrar-se no interior do saber que percorre em sua positividade o domínio empírico do homem; mas a razão disto é que designam as condições de possibilidade de todo saber sobre o homem. 

E precisamente 

  • quando esta linguagem se mostra em estado nu, 
    • mas se furta ao mesmo tempo para fora de toda significação como se fosse um grande sistema despótico e vazio, 
  • quando o Desejo reina em estado selvagem, 
    • como se o rigor de sua regra tivesse nivelado toda oposição, 
  • quando a Morte domina toda função psicológica e se mantém acima dela 
    • como sua norma única e devastadora 

então reconhecemos a loucura em sua forma presente, a loucura tal como se dá à experiência moderna, como sua verdade e sua alteridade. 

Nessa figura empírica, e contudo estranha a (e em) tudo o que podemos experimentar, nossa consciência 

  • não encontra mais, como no século XVI, o vestígio de um outro mundo; 
  • ela não constata mais o vaguear da razão extraviada; 
  • ela vê surgir o que nos é perigosamente o mais próximo – como se subitamente se perfilasse, em relevo, o recôncavo mesmo de nossa existência; 

a finitude, a partir da qual nós somos, pensamos e sabemos, está subitamente diante de nós, existência a um tempo real e impossível, pensamento que não podemos pensar, objeto para nosso saber mas que a ele se furta sempre. 

É por isso que a psicanálise encontra nesta loucura por excelência – a que os psiquiatras chamam esquizofrenia – o seu íntimo, o seu mais invencível tormento: pois nesta loucura se dão, sob uma forma absolutamente manifesta e absolutamente retraída, as formas da finitude em direção à qual, de ordinário, ela avança indefinidamente (e no interminável), a partir do que lhe é voluntária-involuntariamente oferecido na linguagem do paciente. 

De sorte que a psicanálise “reconhece-se aí”, quando é colocada diante destas mesmas psicoses às quais, no entanto (ou antes, por essa mesma razão) ela quase não tem acesso: como se a psicose expusesse numa iluminação cruel e oferecesse de um modo demasiado longínquo, mas justamente demasiado próximo, aquilo em cuja direção a análise deve lentamente caminhar. 

Mas esta relação da psicanálise com o que torna possível todo saber em geral na ordem das ciências humanas tem ainda uma outra consequência. 

É que ela não pode desenvolver-se como puro conhecimento especulativo ou teoria geral do homem. Não pode atravessar o campo inteiro da representação, tentar contornar suas fronteiras, apontar para o mais fundamental, na forma de uma ciência empírica construída a partir de observações cuidadosas; 

essa travessia só pode ser feita no interior de uma prática em que não é apenas o conhecimento que se tem do homem que está empenhado, mas o próprio homem – 

  • o homem com essa Morte que age no seu sofrimento, 
  • esse Desejo que perdeu seu objeto 
  • e essa linguagem pela qual, através da qual se articula silenciosamente sua Lei. 

Todo saber analítico é, pois, invencivelmente ligado a uma prática, a este estrangulamento da relação entre dois indivíduos, em que um escuta a linguagem do outro, libertando assim seu desejo do objeto que ele perdeu (fazendo-o entender que o perdeu) e libertando-o da vizinhança sempre repetida da morte (fazendo-o entender que um dia morrerá). 

É por isso que nada é mais estranho à psicanálise que alguma coisa como uma teoria geral do homem ou uma antropologia. 

Assim como 

  • a psicanálise se coloca na dimensão do inconsciente 
    (dessa animação crítica que inquieta interiormente todo o domínio das ciências humanas), 
  • a etnologia se coloca na da historicidade 
    (desta perpétua oscilação que faz com que as ciências humanas sejam sempre contestadas, do exterior, por sua própria história). 

É sem dúvida difícil sustentar que a etnologia tem uma relação fundamental com a historicidade, já que ela é tradicionalmente o conhecimento dos povos sem história; em todo o caso, ela estuda nas culturas (ao mesmo tempo por escolha sistemática e por falta de documentos) antes as invariantes de estrutura que a sucessão dos acontecimentos. 

Suspende o longo discurso “cronológico” pelo qual tentamos refletir nossa própria cultura no interior dela mesma, para fazer surgir correlações sincrônicas em outras formas culturais. E, contudo, a própria etnologia só é possível a partir de uma certa situação, de um acontecimento absolutamente singular, em que se acham empenhadas a um tempo a nossa historicidade e a de todos os homens que podem constituir o objeto de uma etnologia (ficando entendido que podemos perfeitamente fazer a etnologia de nossa própria sociedade): a etnologia se enraíza, com efeito, numa possibilidade que pertence propriamente à história de nossa cultura, mais ainda, à sua relação fundamental com toda história, e que lhe permite ligar-se às outras culturas à maneira da pura teoria. 

Há uma certa posição da ratio ocidental que se constituiu na sua história e que funda a relação que ela pode ter com todas as outras sociedades, mesmo com aquela sociedade em que ela historicamente apareceu. Isto não quer dizer, evidentemente, que a situação colonizadora seja indispensável à etnologia: nem a hipnose, nem a alienação do doente na personagem fantasmática do médico são constitutivos da psicanálise; mas, assim como esta só pode desenvolver-se na violência calma de uma relação singular e da transferência que ela requer, do mesmo modo a etnologia só assume suas dimensões próprias na soberania histórica – sempre retida, mas sempre atual – do pensamento europeu e da relação que o pode confrontar com todas as outras culturas e com ele próprio. 

Mas essa relação (na medida em que a etnologia não busca apagá- Ia, mas, ao contrário, escava-a, instalando-se definitivamente nela) não a encerra nos jogos circulares do historicismo; coloca-a, antes, em posição de contornar seu perigo, invertendo o movimento que os faz nascer: com efeito, em vez de reportar os conteúdos empíricos, tais como psicologia, a sociologia ou a análise das literaturas e dos mitos podem fazê-los aparecer, à positividade histórica do sujeito que os percebe, a etnologia coloca as formas singulares de cada cultura, as diferenças que as opõem às outras, os limites pelos quais se define e se fecha sobre sua própria coerência na dimensão em que se estabelecem suas relações com cada uma das três grandes positividades (a vida, a necessidade e o trabalho, a linguagem); 

assim, a etnologia mostra como se faz numa cultura 

  • a normalização das grandes funções biológicas, 
  • as regras que tornam possíveis ou obrigatórias todas as formas de troca, de produção e de consumo, 
  • o sistemas que se organizam em torno ou sobre o modelo das estruturas linguísticas. 

A etnologia avança, pois, em direção à região onde as ciências humanas se articulam com aquela biologia, com aquela economia, com aquela filologia e aquela linguística acerca das quais se viu de que altura as dominavam: é por isto que o problema geral de toda etnologia é exatamente aquele das relações (de continuidade ou de descontinuidade) entre a natureza e a cultura. 

Mas, neste tipo de interrogação, o problema da história se acha invertido: pois trata-se então de determinar, 

  • segundo os sistemas simbólicos utilizados, 
  • segundo as regras prescritas, 
  • segundo as normas funcionais escolhidas e estabelecidas, 

de que espécie de devir histórico cada cultura é suscetível; ela busca retomar, desde raiz, o modo de historicidade que aí pode aparecer, as razões pelas quais a história aí será necessariamente cumulativa ou circular, progressiva ou submetida a oscilações reguladoras, capaz de ajustamentos espontâneos ou submetida a crises. 

E assim se acha esclarecido o fundamento deste fluir histórico em cujo interior as diferentes ciências humanas assumem sua validade e podem ser aplicadas a uma dada cultura e numa dada região sincrônica. 

A etnologia, como a psicanálise, interroga 

  • não o próprio homem tal como pode aparecer nas ciências humanas, 
  • mas a região que torna possível, em geral, um saber sobre o homem; 

como a psicanálise, ela atravessa todo o campo desse saber num movimento que tende a atingir seus limites. 

Mas a psicanálise 

  • se serve da relação singular da transferência para descobrir, nos confins exteriores da representação, o Desejo, a Lei, a Morte que desenham, no extremo da linguagem e da prática analíticas, as figuras concretas da finitude; 

já a etnologia 

  • aloja-se no interior da relação singular que a ratio ocidental estabelece com todas as outras culturas; e, a partir daí, ela traça o contorno das representações que os homens, numa civilização, se podem dar de si mesmos, de sua vida, de suas necessidades, das significações depositadas em sua linguagem; e ela vê surgir, por trás destas representações, 
    • as normas a partir das quais os homens cumprem as funções da vida, mas repelindo sua pressão imediata, 
    • as regras através das quais experimentam e mantêm suas necessidades, 
    • os sistemas sobre cujo fundo toda significação lhes é dada. 

O privilégio da etnologia e da psicanálise, a razão de seu profundo parentesco e de sua simetria – não devem, pois, ser buscados numa certa preocupação que uma e outra teriam em penetrar o profundo enigma, a parte mais secreta da natureza humana; de fato, o que se espelha no espaço de seu discurso é muito mais o a priori histórico de todas as ciências humanas – as grandes cesuras, os sulcos, as partilhas que, na epistémê ocidental, desenharam o perfil do homem e o dispuseram para um saber possível. 

Era, portanto, muito necessário que ambas fossem ciências do inconsciente: 

  • não porque atingem no homem o que está por sob a sua consciência, 
  • mas porque se dirigem ao que, fora do homem, permite que se saiba, com um saber positivo, o que se dá ou escapa à sua consciência. 

Pode-se compreender, a partir daí, um certo número de fatos decisivos. 

E, no primeiro plano, o seguinte: 

que a psicanálise e a etnologia não são tanto ciências humanas ao lado das outras, 

mas percorrem o domínio inteiro destas, o animam em toda a sua superfície, expandem por toda a parte seus conceitos, podem propor em todos os lugares seus métodos de decifração e suas interpretações. 

Nenhuma ciência humana pode assegurar-se de nada lhes dever, nem de ser totalmente independente do que elas puderam descobrir, nem estar certa de não depender delas de uma forma ou de outra. 

Porém seu desenvolvimento tem a particularidade de que 

  • por mais que pretendam ter um “alcance” quase universal, 
  • nem por isso se aproximam de um conceito geral do homem: 
    • em nenhum momento elas tendem a delimitar o que nele poderia haver de específico, 
    • de irredutível, 
    • de uniformemente válido em toda a parte onde ele é dado à experiência. 

A ideia de uma “antropologia psicanalítica”, a ideia de uma “natureza humana” restituída pela etnologia não passam de pretensões piegas. Não apenas elas podem dispensar o conceito de homem, como ainda não podem passar por ele, pois se dirigem sempre ao que constitui seus limites exteriores. 

Em relação às “ciências humanas”, a psicanálise e a etnologia são antes “contraciências”; 

  • o que não quer dizer que sejam menos “racionais” ou “objetivas” que as outras, 
  • mas que elas as assumem no contra-fluxo, 
  • reconduzem-nas a seu suporte epistemológico 
  • e não cessam de “desfazer” esse homem que, nas ciências humanas, faz e refaz sua positividade. 

Compreende-se, enfim, que psicanálise e etnologia sejam estabelecidas uma em face da outra, numa correlação fundamental: desde Totem e tabu, a instauração de um campo que lhes seria comum, a possibilidade de um discurso que poderia ir de uma à outra sem descontinuidade, a dupla articulação 

  • da história dos indivíduos com o inconsciente das culturas 
  • e da historicidade destas com o inconsciente dos indivíduos 

abrem, sem dúvida, os problemas mais gerais que se podem levantar a propósito do homem. 

Adivinha-se o prestígio e a importância de uma etnologia que, 

  • em vez de se definir primeiramente, como o fez até então, pelo estudo das sociedades sem história, 
  • buscasse deliberadamente seu objeto do lado dos processos inconscientes que caracterizam o sistema de uma dada cultura;

ela poria em jogo, assim, 

  • a relação da historicidade, relação essa constitutiva de toda etnologia em geral, 
  • no interior da dimensão em que sempre se desenrolou a psicanálise. 

Assim fazendo, ela não assimilaria os mecanismos e as formas de uma sociedade à pressão e à repressão de fantasmas coletivos, reencontrando deste modo, mas a uma escala mais larga, o que a análise pode descobrir ao nível dos indivíduos; 

  • definiria como sistema dos inconscientes culturais o conjunto das estruturas formais que tornam significantes os discursos míticos, 
  • dão às regras que regem as necessidades sua coerência e sua imprescindibilidade, 
  • fundam, não na natureza, não nas puras funções biológicas, as normas de vida. 

Adivinha-se a importância simétrica de uma psicanálise que, por seu lado, encontrasse a dimensão de uma etnologia, não pela instauração de uma “psicologia cultural”, não pela explicação sociológica de fenômenos manifestados ao nível dos indivíduos, mas pela descoberta de que também o inconsciente possui – ou, antes de que ele próprio é uma certa estrutura formal. 

Por aí etnologia e psicanálise viriam, não a se superpor nem mesmo talvez a se reunir, mas a se cruzar como duas linhas diferentemente orientadas: 

  • uma, indo da elisão aparente do significado na neurose à lacuna no sistema significante por onde esta vem a manifestar-se; 
  • a outra, indo da analogia dos significados múltiplos (nas mitologias, por exemplo) à unidade de uma estrutura, cujas transformações formais liberariam a diversidade de narrativas. 

Não seria, portanto, ao nível das relações entre indivíduos e sociedade, como frequentemente se acreditou, que a psicanálise e a etnologia poderiam articular-se uma com a outra; 

  • não é porque o indivíduo faz parte de seu grupo, 
  • não é porque uma cultura se reflete e se exprime de um modo mais ou menos refratado no indivíduo, 

que essas duas formas de saber são vizinhas. 

Na verdade, elas têm somente um ponto comum, porém essencial e inevitável: é aquele em que elas se cortam em ângulo reto; pois a cadeia significante pela qual se constitui a experiência única do indivíduo é perpendicular ao sistema formal a partir do qual se constituem as significações de uma cultura; 

  • a cada instante a estrutura própria da experiência individual encontra nos sistemas da sociedade certo número de escolhas possíveis (e de possibilidades excluídas); 

inversamente,

  • as estruturas sociais encontram, em cada um de seus pontos de escolha, certo número de indivíduos possíveis (e outros que não o são) – 
  • assim como na linguagem a estrutura linear torna sempre possível, em dado momento, a escolha entre várias palavras ou vários fonemas (mas exclui todos os outros). 

Forma-se, então, o tema de uma teoria pura da linguagem, que daria à etnologia e à psicanálise assim concebidas seu modelo formal. Haveria assim uma disciplina que poderia cobrir, no seu único percurso, 

  • tanto esta dimensão da etnologia que refere as ciências humanas às positividades que as margeiam, 
  • quanto esta dimensão da psicanálise que refere o saber do homem à finitude que o funda. 

Com a linguística, 

ter-se-ia uma ciência perfeitamente fundada na ordem das positividades exteriores ao homem (pois que se trata de linguagem pura) e que, atravessando todo o espaço das ciências humanas, atingiria a questão da finitude (pois que é através da linguagem e nela que o pensamento pode pensar: de sorte que ela é, em si mesma, uma positividade que vale como o fundamental). 

Acima da etnologia e da psicanálise, mais exatamente intrincada com elas, uma terceira “contraciência” viria percorrer, animar, inquietar todo o campo constituído das ciências humanas e, extravasando-o, tanto do lado das positividades quanto do lado da finitude, formaria sua contestação mais geral. Como as duas outras contraciências, ela faria aparecer, num modo discursivo, as formas-limites das ciências humanas; como elas, alojaria sua experiência nestas regiões iluminadas e perigosas onde o saber do homem trava, sob as espécies do inconsciente e da historicidade, sua relação com o que as torna possíveis. 

Todas as três põem em risco, “expondo-o”, aquilo mesmo que permitiu ao homem ser conhecido. 

Assim se tece sob nossos olhos o destino do homem, mas tece-se às avessas; nestes estranhos fusos, é ele reconduzido às formas de seu nascimento, à pátria que o tornou possível. 

Mas não é essa uma forma de conduzi-Io ao seu fim? 

Pois a linguística, tanto quanto a psicanálise ou a etnologia, não fala do próprio homem. 

Dir-se-á talvez que, desempenhando este papel, a linguística não faz mais que retomar as funções que foram outrora as da biologia ou da economia quando, no século XIX e no começo do século XX, se pretendeu unificar as ciências humanas sob conceitos tomados à biologia ou à economia.

Mas a linguística arrisca-se a ter um papel muito mais fundamental. E por várias razões. 

Primeiro porque ela permite – esforça-se, ao menos, por tornar possível – a estruturação dos próprios conteúdos; 

  • não é, pois, uma retomada teórica dos conhecimentos adquiridos alhures, interpretação de uma leitura já feita dos fenômenos; 
  • não propõe uma “versão linguística” de fatos observados nas ciências humanas, é o princípio de uma decifração primeira; 
  • sob um olhar armado por ela, as coisas só acedem à existência na medida em que podem formar os elementos de um sistema significante. 

A análise linguística é mais uma percepção que uma explicação: isso quer dizer que é constitutiva de seu objeto mesmo. 

Ademais, eis que, por esta emergência da estrutura (como relação invariante num conjunto de elementos), a relação das ciências humanas com as matemáticas acha-se novamente aberta e segundo uma dimensão totalmente nova; 

  • não se trata mais de saber se se podem quantificar resultados, ou se os comportamentos humanos são suscetíveis de entrar no campo de uma probabilidade mensurável; 
  • a questão que se coloca é a de saber se se pode utilizar sem jogo de palavras a noção de estrutura, 
  • ou, ao menos, se é da mesma estrutura que se fala em matemáticas e nas ciências humanas; 

questão que é central, se se quiser conhecer as possibilidades e os direitos, as condições e os limites de uma formalização justificada; vê-se que a relação das ciências humanas com o eixo das disciplinas formais e a priori – relação que não fora essencial até então e se torna fundamental agora que, no espaço das ciências humanas, surge igualmente sua relação com a positividade empírica da linguagem e com a analítica da finitude; os três eixos que definem o volume próprio às ciências do homem tornam-se assim visíveis, e quase simultaneamente, nas questões que elas colocam. 

Enfim, a importância da linguística e de sua aplicação ao conhecimento do homem faz reaparecer, em sua insistência enigmática, a questão do ser da linguagem acerca da qual se viu quanto estava ligada aos problemas fundamentais de nossa cultura. 

Questão que a utilização cada vez mais ampliada das categorias linguísticas avoluma ainda mais, uma vez que é necessário doravante indagar o que deve ser a linguagem, para assim estruturar o que não é, todavia, por si mesmo, nem palavra nem discurso, e para articular-se com as formas puras do conhecimento. 

Por um caminho muito mais longo e muito mais imprevisto, somos reconduzidos a esse lugar que Nietzsche e Mallarmé haviam indicado quando um deles perguntara: Quem fala? e o outro vira cintilar a resposta na própria Palavra. A interrogação sobre o que é a linguagem em seu ser reassume, ainda uma vez, seu tom imperativo. 

Neste ponto em que a questão da linguagem ressurge com uma tão forte superdeterminação e em que ela parece investir, por todas as partes, a figura do homem 

(esta figura que justamente tomara outrora
o lugar do Discurso clássico),

 a cultura contemporânea está se fazendo numa parte importante de seu presente e talvez de seu porvir. 

De um lado aparecem, como que subitamente, muito próximas de todos estes domínios empíricos, questões que pareciam, até então, bastante afastadas deles: estas questões são aquelas de uma formalização geral do pensamento e do conhecimento; e no momento em que se julgava que elas ainda estavam votadas tão somente à relação entre a lógica e as matemáticas, eis que elas se abrem à possibilidade e também à tarefa de purificar a velha razão empírica, pela constituição de linguagens formais, e de exercer uma segunda crítica da razão pura, a partir de formas novas do a priori matemático. 

Entrementes, na outra extremidade de nossa cultura, a questão da linguagem se acha confiada àquela forma de palavra que, sem dúvida, não cessou de colocá-Ia, mas que, pela primeira vez, coloca-a a si mesma. 

Que a literatura de nossos dias seja fascinada pelo ser da linguagem – isso não é nem o sinal de um fim nem a prova de uma radicalização: é um fenômeno que enraíza sua necessidade numa bem vasta configuração em que se desenha toda a nervura de nosso pensamento e de nosso saber. 

Mas se a questão das linguagens formais faz valer a possibilidade ou a impossibilidade de estruturar os conteúdos positivos, uma literatura votada à linguagem faz valer, em sua vivacidade empírica, as formas fundamentais da finitude. 

Do interior da linguagem experimentada e percorrida como linguagem, no jogo de suas possibilidades estiradas até seu ponto extremo, 

  • o que se anuncia é que o homem é “finito” e que, 
  • alcançando o ápice de toda palavra possível, não é ao coração de si mesmo que ele chega, 
  • mas às margens do que o limita: 
    • nesta região onde ronda a morte, 
    • onde o pensamento se extingue, 
    • onde a promessa da origem recua indefinidamente. 

Era imprescindível que esse novo modo de ser da literatura fosse desvelado em obras como as de Artaud ou de Roussel – e por homens como eles; 

  • em Artaud, a linguagem, recusada como discurso e retomada na violência plástica do choque, e remetida ao grito, ao corpo torturado, à materialidade do pensamento, à carne; 
  • em Roussel, a linguagem, pulverizada por um acaso sistematicamente manejado, conta indefinidamente a repetição da morte e o enigma das origens desdobradas. 

E, como se essa prova das formas da finitude na linguagem não pudesse ser suportada, ou como se ela fosse insuficiente (talvez sua insuficiência mesma fosse insuportável), foi no interior da loucura que ela se manifestou – oferecendo-se assim a figura da finitude na linguagem (como o que nela se desvela), mas também antes dela, aquém dela, como esta região informe, muda, não-significante onde a linguagem pode liberar-se. 

E é realmente neste espaço assim posto a descoberto que a literatura, com o surrealismo primeiramente (mas sob uma forma ainda bem travestida), depois, cada vez mais puramente, com Kafka, com Bataille, com Blanchot, se deu como experiência: como experiência da morte (e no elemento da morte), do pensamento impensável (e na sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária, sempre lá, no extremo mais próximo da linguagem e sempre o mais afastado); como experiência da finitude (apreendida na abertura e na coerção dessa finitude). 

Vê-se que este “retorno” da linguagem não tem em nossa cultura valor de interrupção súbita; não é a descoberta irruptiva de uma evidência há muito escondida; não é a marca de uma dobra do pensamento sobre si mesmo, no movimento pelo qual ele se liberta de todo conteúdo, nem de um narcisismo da literatura, liberando-se enfim do que ela teria a dizer para não mais falar senão do fato de que ela é linguagem posta a nu. 

De fato, trata-se aí do desdobramento rigoroso da cultura ocidental, segundo a necessidade que ela atribuiu a si própria no início do século XIX. 

Seria falso ver, neste índice geral de nossa experiência a que se pode chamar o “formalismo”, o sinal de uma petrificação, de uma rarefação do pensamento incapaz de reassumir a plenitude dos conteúdos; não seria menos falso colocá-lo de imediato no horizonte de um novo pensamento e de um novo saber. 

Foi no interior do desenho muito cerrado, muito coerente da epistémê moderna que essa experiência contemporânea encontrou sua possibilidade; foi mesmo ele que, por sua lógica, suscitou-a, constituiu-a de parte a parte e tornou impossível que ela não existisse. 

O que se passou na época de Ricardo, de Cuvier e de Bopp, esta forma de saber que se instaurou com a economia, a biologia e a filologia, o pensamento da finitude que a critica kantiana prescreveu como tarefa para a filosofia, tudo isto forma ainda o espaço imediato de nossa reflexão. 

É neste lugar que nós pensamos. 

E, contudo, a impressão de acabamento e de fim, o sentimento surdo que sustenta, anima nosso pensamento, acalenta-o talvez assim com a facilidade de suas promessas, e que nos faz crer que alguma coisa de novo está em vias de começar, de que apenas se suspeita um leve traço de luz na orla do horizonte – este sentimento e esta impressão talvez não sejam infundados. 

Dir-se-á que existem, que não cessaram de se formular sempre de novo desde o começo do século XIX; dir-se-á que Hôlderlin, que Hegel, que Feuerbach e Marx já tinham, todos eles, esta certeza de que neles um pensamento e talvez uma cultura findavam, e que, do fundo de uma distância que talvez não fosse invencível, uma outra se aproximava – no recato da aurora, no fulgor do meio-dia, ou no contraste do dia que acaba. 

Mas esta próxima, esta perigosa iminência cuja promessa hoje tememos, cujo perigo acolhemos, não é, sem dúvida, da mesma ordem. O que este anúncio prescrevia então ao pensamento era estabelecer para o homem uma morada estável nesta terra, donde os deuses se tinham evadido ou desaparecido. 

Em nossos dias, e ainda aí Nietzsche indica de longe o ponto de inflexão, 

  • não é tanto a ausência ou a morte de Deus que é afirmada, mas sim o fim do homem (este tênue, este imperceptível desnível este recuo na forma da identidade que fazem com que a finitude do homem se tenha tornado o seu fim); 
  • descobre-se então que a morte de Deus e o último homem estão vinculados: não é acaso o último homem que anuncia ter matado Deus, colocando assim sua linguagem, seu pensamento, seu riso no espaço do Deus já morto, mas também se apresentando como aquele que matou Deus e cuja existência envolve a liberdade e a decisão deste assassínio? 

Assim, o último homem é ao mesmo tempo mais velho e mais novo que a morte de Deus; uma vez que matou Deus, é ele mesmo que deve responder por sua própria finitude; mas, uma vez que é na morte de Deus que ele fala, que ele pensa e existe, seu próprio assassinato está condenado a morrer; deuses novos, os mesmos, já avolumam o Oceano futuro; o homem vai desaparecer. 

Mais que a morte de Deus – ou antes, no rastro desta morte e segundo uma correlação profunda com ela, o que anuncia o pensamento de Nietzsche é o fim de seu assassino; é o esfacelamento do rosto do homem no riso e o retorno das máscaras; é a dispersão do profundo escoar do tempo, pelo qual ele se sentia transportado e cuja pressão ele suspeitava no ser mesmo das coisas; é a identidade do Retomo do Mesmo e da absoluta dispersão do homem. 

Durante todo o século XIX, o fim da filosofia e a promessa de uma cultura próxima constituíam, sem dúvida, uma única e mesma coisa, juntamente com o pensamento da finitude e o aparecimento do homem no saber; hoje, o fato de que a filosofia esteja sempre e ainda em via de acabar e o fato de que nela talvez, porém mais ainda fora dela e contra ela, na literatura como na reflexão formal, a questão da linguagem se coloque, provam sem dúvida que o homem está em via de desaparecer. 

É que toda a epistémê moderna – aquela que se formou por volta do fim do século XVIII e serve ainda de solo positivo ao nosso saber, aquela que constituiu o modo de ser singular do homem e a possibilidade de conhecê-lo empiricamente – toda essa epistémê estava ligada ao desaparecimento do Discurso e de seu reino monótono, ao deslizar da linguagem para o lado da objetividade e ao seu reaparecimento múltiplo. 

Se essa mesma linguagem surge agora com insistência cada vez maior numa unidade que devemos mas não podemos ainda pensar, não será isto o sinal de que toda essa configuração vai agora deslocar-se, e que o homem está em via de perecer, na medida em que brilha mais forte em nosso horizonte o ser da linguagem? 

Tendo o homem se constituído quando a linguagem estava votada à dispersão, não vai ele ser disperso quando a linguagem se congrega? 

E se isto fosse verdade, não seria um erro – um erro profundo, pois que nos esconderia o que cumpre pensar agora – interpretar a experiência atual como uma aplicação das formas da linguagem à ordem do humano? 

Não seria antes preciso renunciar a pensar o homem, ou, para ser mais rigoroso, pensar mais de perto este desaparecimento do homem – e o solo de possibilidade de todas as ciências do homem – na sua correlação com nossa preocupação com a linguagem? 

Não se deve admitir que, estando a linguagem novamente aí, o homem retomará àquela existência serena em que outrora o mantivera a unidade Imperiosa do Discurso? 

O homem fora uma figura entre dois modos de ser da linguagem; ou antes, ele não se constituiu senão no tempo em que a linguagem, após ter sido alojada no interior da representação e como que dissolvida nela, dela só se liberou despedaçando-se: o homem compôs sua própria figura nos interstícios de uma linguagem em fragmentos. 

Certamente, não se trata aí de afirmações quando muito e questões às quais não é possível responder; é preciso deixá-Ias em suspenso Iá onde elas se colocam, sabendo apenas que a possibilidade de as colocar abre sem dúvida, para um pensamento futuro.

Comentários

    III. Os três modelos

    III. Os três modelos

    As três faces do conhecimento

    Assim, estes três pares,

    • função e norma,
    • conflito e regra,
    • significação e sistema,

    cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do homem.

    Numa primeira abordagem, pode-se dizer que o domínio das ciências humanas é coberto por três “ciências” – ou, antes, por três regiões epistemológicas, todas subdivididas no interior de si mesmas e todas entrecruzadas umas com as outras; essas regiões são definidas pela tríplice relação das ciências humanas em geral com a biologia, a economia, a filologia. 

    Poder-se-ia admitir assim que 

    • a “região psicológica” encontrou seu lugar lá onde o ser vivo, no prolongamento de suas funções, de seus esquemas neuromotores, de suas regulações fisiológicas, mas também na suspensão que os interrompe e os limita, se abre à possibilidade da representação; 
    • do mesmo modo, a “região sociológica” teria encontrado seu lugar lá onde o indivíduo que trabalha, produz e consome se confere a representação da sociedade em que se exerce essa atividade, dos grupos e dos indivíduos entre os quais ela se reparte, dos imperativos, das sanções, dos ritos, das festas e das crenças mediante os quais ela é sustentada ou regulada; 
    • enfim naquela região onde reinam as leis e as formas de uma linguagem, mas onde, entretanto, elas permanecem à margem de si mesmas, permitindo ao homem fazer aí passar o jogo de suas representações, lá nascem o estudo das literaturas e dos mitos, a análise de todas as manifestações orais e de todos os documentos escritos, em suma, a análise dos vestígios verbais que uma cultura ou um indivíduo podem deixar de si mesmos.

    Essa repartição, ainda que muito sumária, não é certamente demasiado inexata. Ela deixa, porém, na íntegra, dois problemas fundamentais: 

    • um concerne à forma de positividade que é própria às ciências humanas (os conceitos em torno dos quais elas se organizam, o tipo de racionalidade ao qual se referem e pelo qual buscam constituir-se como saber); 
    • outro, à sua relação com a representação (e a este fato paradoxal de que, embora tendo lugar somente onde há representação, é a mecanismos, formas, processos inconscientes, é, em todo o caso, aos limites exteriores da consciência que elas se dirigem). 

    São bem conhecidos os debates a que deu lugar a busca de uma positividade específica no campo das ciências humanas: análise genética ou estrutural? explicação ou compreensão? recurso ao “inferior” ou manutenção da decifração ao nível da leitura? 

    Na verdade, todas essas discussões teóricas não nasceram e não prosseguiram ao longo de toda a história das ciências humanas porque estas teriam que lidar com o homem como com um objeto tão complexo que não se teria podido encontrar em sua direção um modo de acesso único, ou que se teria sido constrangido a utilizar vários alternadamente. De fato, essas discussões só puderam existir na medida em que a positividade das ciências humanas se apóia simultaneamente na transferência de três modelos distintos. Essa transferência não é, para as ciências humanas, um fenômeno marginal (uma espécie de estrutura de apoio, de desvio mediante uma inteligibilidade exterior, de confirmação no campo das ciências já constituídas); não é também um episódio limitado de sua história (uma crise de formação numa época em que eram ainda tão novas, que não podiam fixar por si próprias seus conceitos e suas leis). 

    Trata-se de um fato indelével, que está ligado, para sempre, à sua disposição própria no espaço epistemológico. Convém, com efeito, distinguir duas espécies de modelos utilizados pelas ciências humanas (pondo à parte os modelos de formalização). 

    • Houve, por um lado – e ainda há freqüentemente – conceitos que são transportados a partir de outro domínio do conhecimento e que, perdendo então toda eficácia operatória, não desempenham mais que um papel de imagem (as metáforas organicistas na sociologia do século XIX; as metáforas energéticas em Janet; as metáforas geométricas e dinâmicas em Lewin). 
    • Mas há também os modelos constituintes que não são, para as ciências humanas, técnicas de formalização nem simples meios para, com o menor esforço, imaginar processos; eles permitem formar conjuntos de fenômenos como tantos “objetos” para um saber possível; asseguram sua ligação na empiricidade, mas os oferecem à experiência já ligados entre si. Desempenham o papel de “categorias” no saber singular das ciências humanas.

    Esses modelos constituintes são tomados de empréstimo aos três domínios da biologia, da economia e do estudo da linguagem. 

    • É na superfície de projeção da biologia que o homem aparece como um ser que tem funções – que recebe estímulos (fisiológicos, mas também sociais, interhumanos, culturais), que responde a eles, que se adapta, evolui, submete-se às exigências do meio, harmoniza-se com as modificações que ele impõe, busca apagar os desequilíbrios, age segundo regularidades, tem, em suma, condições de existência e a possibilidade de encontrar normas médias de ajustamento que lhe permitem exercer suas funções. 
    • Na superfície de projeção da economia, o homem aparece enquanto tem necessidades e desejos, enquanto busca satisfazê-Ios, enquanto, pois, tem interesses, visa a lucros, opõe-se a outros homens; em suma, ele aparece numa irredutível situação de conflito; a esses conflitos ele se esquiva, deles foge ou chega a dominá-los, a encontrar uma solução que apazigue, ao menos em um nível e por algum tempo, sua contradição; instaura um conjunto de regras que são, ao mesmo tempo, limitação e dilatação do conflito. 
    • Enfim, na superfície de projeção da linguagem, as condutas do homem aparecem como querendo dizer alguma coisa; seus menores gestos, até em seus mecanismos involuntários e até em seus malogros, têm um sentido; e tudo o que ele deposita em torno de si, em matéria de objetos, de ritos, de hábitos, de discurso, toda a esteira de rastros que deixa atrás de si constitui um conjunto coerente e um sistema de signos. 

    Assim, estes três pares,
    – função e norma,
    – conflito e regra,
    – significação e sistema, 
    cobrem, por completo,
    o domínio inteiro do conhecimento do homem. 

    Contudo, não se deve julgar que cada um desses pares de conceitos permanece localizado na superfície de projeção em que puderam nascer: 

    • a função e a norma não são conceitos psicológicos e exclusivamente tais; 
    • o conflito e a regra não têm uma aplicação limitada apenas ao domínio sociológico; 
    • a significação e o sistema não valem somente para os fenômenos mais ou menos aparentados à linguagem. 

    Todos esses conceitos são retomados no volume comum das ciências humanas, valem em cada uma das regiões que ele envolve: daí se segue ser freqüentemente difícil fixar os limites, não só entre os objetos, mas também entre os métodos próprios à psicologia, à sociologia, à análise das literaturas e dos mitos. 

    No entanto, pode-se dizer, de maneira global, que 

    • a psicologia é fundamentalmente um estudo do homem em termos de funções e de normas (funções e normas que se podem, de maneira secundária, interpretar a partir dos conflitos e das significações, das regras e dos sistemas); 
    • a sociologia é fundamentalmente um estudo do homem em termos de regras e de conflitos (mas estes podem ser interpretados, e somos constantemente levados a interpretá-los secundariamente, quer a partir das funções, como se fossem indivíduos organicamente ligados a si mesmos, quer a partir de sistemas de significações, como se fossem textos escritos ou falados); 
    • enfim, o estudo das literaturas e dos mitos procede essencialmente de uma análise das significações e dos sistemas significantes, mas sabe-se bem que esta pode ser retomada em termos de coerência funcional ou de conflitos e de regras. 

    É assim que todas as ciências humanas se entrecruzam e podem sempre interpretar-se umas às outras, que suas fronteiras se apagam, que as disciplinas intermediárias e mistas se multiplicam indefinidamente, que seu objeto próprio acaba mesmo por dissolver-se. Mas, qualquer que seja a natureza da análise e o domínio a que ela se aplica, tem-se um critério formal para saber o que é do nível da psicologia, da sociologia ou da análise das linguagens: é a escolha do modelo fundamental e a posição dos modelos secundários que permitem saber em que momento se “psicologiza” ou se “sociologiza” no estudo das literaturas e dos mitos, em que momento se faz, em psicologia, decifração de textos ou análise sociológica. 

    Mas essa superposição de modelos não é um defeito de método. Só há defeito se os modelos não forem ordenados e explicitamente articulados uns com os outros. Sabe-se com que precisão admirável se pôde conduzir o estudo das mitologias indo-europeias utilizando, com base numa análise dos significantes e das significações, o modelo sociológico. Sabe-se, em contrapartida, a que trivialidades sincréticas conduziu o sempre medíocre empreendimento de fundar uma psicologia dita “clínica”. Quer seja ele fundado e dominado, quer se realize na confusão, esse entrecruzamento dos modelos constituintes explica as discussões dos métodos há pouco evocadas. Elas não têm sua origem e sua justificação numa complexidade por vezes contraditória que seria o caráter próprio do homem; mas, sim, no jogo de oposição que permite definir cada um dos três modelos em relação aos dois outros. 

    • Opor a gênese à estrutura é opor a função (em seu desenvolvimento, em suas operações progressivamente diversificadas, em suas adaptações adquiridas e equilibradas no tempo) ao sincronismo do conflito e da regra, da significação e do sistema; 
    • opor a análise pelo “inferior” à que se mantém ao nível de seu objeto é opor o conflito (como dado primeiro, arcaico, inscrito já nas necessidades fundamentais do homem) à função e à significação tais como se desdobram na sua realização própria; 
    • opor a compreensão à explicação é opor a técnica que permite decifrar um sentido a partir do sistema significante àquelas que permitem explicar um conflito com suas conseqüências, ou as formas e as deformações que pode assumir e sofrer uma função com seus órgãos.

    Mas é preciso ir mais longe

    As três faces do conhecimento

    Mas é preciso ir mais longe. 

    Sabe-se que, nas ciências humanas, 

    • o ponto de vista da descontinuidade (limiar entre a natureza e a cultura, irredutibilidade mútua dos equilíbrios ou das soluções encontradas por cada sociedade ou cada indivíduo, ausência de formas intermediárias, inexistência de um continuum dado no espaço ou no tempo) 
    • se opõe ao ponto de vista da continuidade

    A existência dessa oposição se explica pelo caráter bipolar dos modelos: 

    a análise em estilo de continuidade apóia-se 

    • na permanência das funções (que se encontra desde o fundo da vida numa identidade que autoriza e enraíza as adaptações sucessivas), 
    • no encadeamento dos conflitos (ainda que assumam formas diversas, seu ruído de fundo não cessa jamais), 
    • na trama das significações (que se retomam umas às outras e constituem como que a superfície de um discurso); 

    a análise das descontinuidades, ao contrário, 

    • procura antes fazer surgir a coerência interna dos sistemas significantes, 
    • a especificidade dos conjuntos de regras 
    • e o caráter de decisão que elas assumem em relação ao que deve ser regulado, a emergência da norma acima das oscilações funcionais. 

    Poder-se-ia talvez retraçar toda a história das ciências humanas desde o século XIX, a partir desses três modelos. Com efeito, eles cobriram todo o seu devir, pois que se pode seguir, há mais de um século, a dinastia de seus privilégios: 

    • primeiro, o reino do modelo biológico (o homem, sua psique, seu grupo, sua sociedade, a linguagem que ele fala existem, na época romântica, enquanto vivos e na medida em que de fato vivem; seu modo de ser é orgânico e é analisado em termos de função); 
    • depois vem o reino do modelo econômico (o homem e toda a sua atividade são o lugar de conflitos de que constituem, ao mesmo tempo, a expressão mais ou menos manifesta e a solução mais ou menos bem-sucedida); 
    • enfim – assim como Freud vem após Comte e Marx – começa o reino do modelo filológico.(quando se trata de interpretar e de descobrir o sentido oculto) e linguístico (quando se trata de estruturar e de trazer à luz o sistema significante). 

    Um amplo declive conduziu, pois, as ciências humanas de uma forma mais densa em modelos vivos a uma outra mais saturada de modelos tirados da linguagem. 

    Esse desvio, porém, foi duplicado por outro: aquele que fez recuar o primeiro termo de cada um dos pares constituintes (função, conflito, significação) e fez surgir com mais intensidade a importância do segundo (norma, regra, sistema): Goldstein, Mauss, Dumezil podem representar, quase igualmente, o momento em que se realizou a reversão em cada um dos modelos. 

    Uma tal reversão tem duas séries de conseqüências notáveis: 

    • enquanto o ponto de vista da função prevalecia sobre o da norma (enquanto não era a partir da norma e do interior da atividade que a estabelece que se tentava compreender a realização da função), era então preciso realmente separar de facto os funcionamentos normais daqueles que não o eram; 
      • admitia-se, assim, uma psicologia patológica bem ao lado da normal, mas para ser como que sua imagem invertida (daí a importância do esquema jacksoniano da desintegração em Ribot ou Janet); 
      • admitia-se também uma patologia das sociedades (Durkheim), das formas irracionais e quase mórbidas de crenças (Lévy-Brühl, Blondel); 
    • do mesmo modo, enquanto o ponto de vista do conflito prevalecia sobre o da regra, supunha-se que certos conflitos não podiam ser superados, que os indivíduos e as sociedades corriam o risco de neles soçobrar; 
    • enfim, enquanto o ponto de vista da significação prevalecia sobre o do sistema, separava-se o significante e o não-significante, admitia-se que em certos domínios do comportamento humano ou do espaço social havia sentido e que em outros não. 

    De maneira que as ciências humanas exerciam no seu próprio campo uma partilha essencial, estendiam-se sempre entre um pólo positivo e um pólo negativo, designavam sempre uma alteridade (e isso a partir da continuidade que elas analisavam). 

    Ao contrário, 

    • quando a análise foi efetuada do ponto de vista da norma, da regra e do sistemacada conjunto recebeu de si mesmo sua própria coerência e sua própria validade, não foi mais possível falar, 
      • mesmo a propósito dos doentes, de “consciência mórbida”, 
      • mesmo a propósito de sociedades abandonadas pela história, de “mentalidades primitivas”, 
      • mesmo a propósito de narrativas absurdas, de lendas aparentemente sem coerência, de “discursos não-significantes”. 

    Tudo pode ser pensado na ordem do sistema, da regra e da norma. 

    Ao pluralizar-se – visto que os sistemas são isolados, que as regras formam conjuntos fechados e que as normas se estabelecem na sua autonomia – o campo das ciências humanas achou-se unificado: deixou, de imediato, de estar cindido segundo uma dicotomia de valores. 

    E se se lembrar que Freud, mais que qualquer outro, aproximou o conhecimento do homem de seu modelo filológico e linguístico, mas que foi também o primeiro a tentar apagar radicalmente a divisão entre o positivo e o negativo (o normal e o patológico, o compreensível e o incomunicável, o significante e o não-significante), compreende-se de que modo anuncia ele a passagem de uma análise em termos de funções, de conflitos e de significações para uma análise em termos de norma, de regras e de sistemas: e é assim que todo esse saber, em cujo interior a cultura ocidental se proveu, em um século, de uma certa imagem do homem, gira em tomo da obra de Freud, sem contudo sair de sua disposição fundamental. 

    Mas não é ainda aí – como se verá dentro em pouco – que está a importância mais decisiva da psicanálise. Em todo o caso, essa passagem para o ponto de vista da norma, da regra e do sistema nos aproxima de um problema que foi deixado em suspenso: o do papel da representação nas ciências humanas. 

    Já podia parecer bem contestável encerrar estas últimas (para opô-Ias à biologia, à economia, à filologia) no espaço da representação; não se deveria já estimar que uma função pode exercer-se, um conflito desenvolver suas conseqüências, uma significação impor sua inteligibilidade sem passar pelo momento de uma consciência explícita? 

    E agora não será preciso reconhecer que o que é específico 

    • da norma em relação à função que ela determina, 
    • da regra em relação ao conflito que ela rege, 
    • do sistema em relação à significação que ele torna possível 

    está precisamente em não serem dados à consciência? 

    Às duas vertentes históricas já isoladas não será preciso acrescentar uma terceira e dizer que, desde o século XIX, as ciências humanas não cessaram de aproximar-se dessa região do inconsciente onde a instância da representação é mantida em suspenso? 

    De fato, a representação não é a consciência e nada prova que este trazer à luz elementos ou organizações que jamais são dados como tais à consciência faça as ciências humanas escaparem à lei da representação. 

    Com efeito, 

    • o papel do conceito de significação é mostrar de que modo alguma coisa como uma linguagem, ainda que não se trate de um discurso explícito e mesmo que não seja desdobrada para uma consciência, pode, em geral, ser dada à representação; 
    • o papel do conceito complementar de sistema é mostrar de que modo a significação jamais é primeira e contemporânea de si mesma, mas sempre segunda e como que derivada em relação a um sistema que a precede, que constitui sua origem positiva, e que se dá, pouco a pouco, por fragmentos e perfis através dela; em relação à consciência de uma significação, o sistema é, na verdade, sempre inconsciente, pois que já estava lá, antes dela, pois que é nele que ela se aloja e a partir dele que ela se efetua; mas isso porque ele fica sempre prometido a uma consciência futura que talvez jamais o totalizará. Em outras palavras, o par significação-sistema é o que assegura, a um tempo, a representabilidade da linguagem (como texto ou estrutura analisados pela filologia e pela linguística) e a presença próxima mas recuada da origem (tal como é manifestada como modo de ser do homem pela analítica da finitude). 

    Da mesma forma, 

    • a noção de conflito mostra de que modo a necessidade, o desejo ou o interesse, ainda que não sejam dados à consciência que os experimenta, podem tomar forma na representação; e o papel do conceito inverso de regra é mostrar de que modo a violência do conflito, a insistência aparentemente selvagem da necessidade, o infinito sem lei do desejo estão, de fato, já organizados por um impensado que não só lhes prescreve sua regra, mas também os torna possíveis a partir de uma regra. O par conflito-regra assegura a representabilidade da necessidade (dessa necessidade que a economia estuda como processo objetivo no trabalho e na produção) e a representabilidade desse impensado desvelado pela analítica da finitude. 
    • Enfim, o conceito de função tem por papel mostrar de que modo as estruturas da vida podem dar lugar à representação (ainda que não sejam conscientes), e o conceito de norma, de que modo a função se dá a si mesma suas próprias condições de possibilidades e os limites de seu exercício. 

    Compreende-se, assim, por que essas grandes categorias podem organizar todo o campo das ciências humanas: é que elas o atravessam de ponta a ponta, mantêm à distância, mas também reúnem as positividades empíricas da vida, do trabalho e da linguagem (a partir das quais o homem historicamente destacou-se como figura de um saber possível) às formas da finitude que caracterizam o modo de ser do homem (tal como se constituiu a partir do dia em que a representação cessou de definir o espaço geral do conhecimento). 

    Essas categorias não são, pois, simples conceitos empíricos de uma bem grande generalidade; elas são, na verdade, aquilo a partir do qual o homem pode oferecer-se a um saber possível; elas percorrem todo o campo de sua possibilidade e o articulam fortemente com as duas dimensões que o delimitam. 

    Mas isso não é tudo: 

    • elas permitem a dissociação, característica de todo saber contemporâneo sobre o homem, entre a consciência e a representação. Definem a maneira como as empiricidades podem ser dadas à representação, mas sob uma forma que não está presente à consciência (a função, o conflito, a significação constituem, realmente, a maneira como a vida, a necessidade, a linguagem são reduplicadas na representação, mas sob uma forma que pode ser perfeitamente inconsciente); 
    • por outro lado, definem a maneira como a finitude fundamental pode ser dada à representação sob uma forma positiva e empírica, mas não transparente à consciência ingênua (nem a norma, nem a regra, nem o sistema, são dados à experiência cotidiana: atravessam-na, dão lugar a consciências parciais, mas não podem ser inteiramente aclarados senão por um saber reflexivo). 

    De sorte que as ciências humanas só falam no elemento do representável, mas segundo uma dimensão consciente-inconsciente, tanto mais acentuada quanto se tente trazer à luz a ordem dos sistemas, das regras e das normas. Tudo se passa como se a dicotomia do normal e do patológico tendesse a esvaecer-se em proveito da bipolaridade da consciência e do inconsciente. 

    Não se deve, pois, esquecer que a importância cada vez mais acentuada do inconsciente em nada compromete o primado da representação. Essa primazia, no entanto, levanta um importante problema. 

    Agora que os saberes empíricos como os da vida, do trabalho e da linguagem escapam à sua lei, agora que se tenta definir fora de seu campo o modo de ser do homem, o que é a representação, senão um fenômeno de ordem empírica que se produz no homem e que se poderia analisar como tal? E se a representação se produz no homem, que diferença há entre ela e a consciência? Mas a representação não é simplesmente um objeto para as ciências humanas; ela é, como se acaba de ver, o próprio campo das ciências humanas, e em toda a sua extensão; é o suporte geral dessa forma de saber, aquilo a partir do qual ele é possível. 

    Daí duas conseqüências. 

    Uma é de ordem histórica: é o fato de que as ciências humanas, diferentemente das ciências empíricas desde o século XIX, e diferentemente do pensamento moderno, não puderam contornar o primado da representação; como todo o saber clássico, alojam-se nelas; porém não são, de modo algum, suas herdeiras ou sua continuação, pois toda a configuração do saber modificou-se, e elas só nasceram na medida em que apareceu, com o homem, um ser que não existia outrora no campo da epistémê. 

    Entretanto, pode-se compreender por que cada vez que há a intenção de servir-se das ciências humanas para filosofar, verter para o espaço do pensamento aquilo que se pôde aprender lá onde o homem estava em questão, falseia-se a filosofia do século XVIII, na qual, todavia, o homem não tinha lugar; 

    • é que, ao estender para além de seus limites o domínio do saber do homem, estende-se igualmente para além dele o reino da representação e se está a instalar-se de novo numa filosofia de tipo clássico. 

    A outra conseqüência é que as ciências humanas, ao tratarem do que é representação (sob uma forma consciente ou inconsciente) estão tratando como seu objeto o que é sua condição de possibilidade. 

    São, portanto, sempre animadas por uma espécie de mobilidade transcendental. Não cessam de exercer para consigo próprias uma retomada critica. Vão do que é dado à representação ao que torna possível a representação, mas que é ainda uma representação. De maneira que elas buscam menos, como as outras ciências, generalizar-se ou precisar-se do que desmistificar-se sem cessar: passar de uma evidência imediata e não-controlada a formas menos transparentes, porém mais fundamentais. 

    Esse percurso quase transcendental dá-se sempre sob a forma do desvelamento. É sempre desvelando que, por contragolpe, elas podem generalizar-se ou se refinar até pensarem os fenômenos individuais. No horizonte de toda ciência humana, há o projeto de reconduzir a consciência do homem às suas condições reais, de restituí-Ia aos conteúdos e às formas que a fizeram nascer e que nela se esquivam; é por isso que o problema do inconsciente – sua possibilidade, seu estatuto, seu modo de existência, os meios de conhecê-lo e de o trazer à luz – não é simplesmente um problema interior às ciências humanas e que elas encontrassem ao acaso de seus procedimentos; é um problema que é, afinal, co-extensivo à sua própria existência. 

    Uma sobrelevação transcendental revertida num desvelamento do não-consciente é constitutiva de todas as ciências do homem. Aí talvez se encontrasse o meio de demarcá-Ias no que elas têm de essencial. O que manifesta, em todo o caso, o específico das ciências humanas, vê-se bem que não é esse objeto privilegiado e singularmente nebuloso que é o homem. Pela simples razão de que não é o homem que as constitui e lhes oferece um domínio específico; mas, sim, é a disposição geral da epistémê que lhes dá lugar, as requer e as instaura – permitindo-lhes assim constituir o homem como seu objeto. 

    Dir-se-á, pois, que há “ciência humana” não onde quer que o homem esteja em questão, mas onde quer que se analisem, na dimensão própria do inconsciente, normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciência as condições de suas formas e de seus conteúdos. Falar de “ciências do homem”, em qualquer outro caso, é puro e simples abuso de linguagem. 

    Avalia-se assim quão vãs e ociosas são todas as enfadonhas discussões para saber se tais conhecimentos podem ser ditos realmente científicos e a que condições deveriam sujeitar-se para vir a sê-lo. As “ciências do homem” fazem parte da epistémê moderna como a química ou a medicina ou alguma outra ciência; ou, ainda, como a gramática e a história natural faziam parte da epistémê clássica. 

    Mas dizer que elas fazem parte do campo epistemológico significa somente que elas nele enraízam sua positividade, que nele encontram sua condição de existência, que não são, portanto, apenas ilusões, quimeras pseudocientíficas, motivadas ao nível das opiniões, dos interesses, das crenças, que elas não são aquilo a que outros dão o estranho nome de “ideologia”. O que não quer dizer, porém, que por isso sejam ciências. 

    Se é verdade que toda ciência, qualquer que seja, quando interrogada ao nível arqueológico e quando se busca desenredar o solo de sua positividade, revela sempre a configuração epistemológica que a tornou possível, em contrapartida, toda configuração epistemológica, mesmo se perfeitamente demarcável em sua positividade, pode muito bem não ser uma ciência: nem por isso se reduz a uma impostura. 

    É preciso distinguir, com cuidado, três coisas: 

    • há temas com pretensão científica que se podem encontrar ao nível das opiniões e que não fazem (ou não mais fazem) parte da rede epistemológica de uma cultura; 

    a partir do século XVII, por exemplo, a magia natural cessou de pertencer à epistémê ocidental, mas prolongou-se por muito tempo no jogo das crenças e das valorizações afetivas. 

    Há, em seguida, 

    • as figuras epistemológicas cujo desenho, posição, funcionamento, podem ser restituídos em sua positividade por uma análise de tipo arqueológico; 

    e, por sua vez, podem obedecer a duas organizações diferentes: 

      • umas apresentam caracteres de objetividade e de sistematicidade que permitem defini-Ias como ciências; 
      • outras não respondem a esses critérios, isto é, sua forma de coerência e sua relação com seu objeto são determinadas tão somente por sua positividade. 

    Estas últimas, conquanto não possuam os critérios formais de um conhecimento científico, pertencem, contudo, ao domínio positivo do saber. Seria, portanto, tão vão e injusto analisá-Ias como fenômenos de opinião, quanto confrontá-Ias, pela história ou pela crítica, com as formações propriamente científicas; mais absurdo ainda seria tratá- Ias como uma combinação que misturasse, segundo proporções variáveis, “elementos racionais” com outros que não o fossem. É preciso recolocá-las ao nível da positividade que as torna possíveis e determina necessariamente sua forma. A arqueologia tem, pois, para com elas, duas tarefas: determinar a maneira como elas se dispõem na epistémê em que se enraízam; mostrar também em que sua configuração é radicalmente diferente daquela das ciências no sentido estrito. Essa configuração que lhes é peculiar não deve ser tratada como um fenômeno negativo: não é a presença de um obstáculo, não é alguma deficiência interna que as fazem malograr no limiar das formas científicas. Elas constituem, na sua figura própria, ao lado das ciências e sobre o mesmo solo arqueológico, outras configurações do saber. 

    Já foram encontrados exemplos de tais configurações na gramática geral ou na teoria clássica do valor; tinham o mesmo solo de positividade que a matemática cartesiana, mas não eram ciências, ao menos para a maioria daqueles que lhes eram contemporâneos. 

    • É o caso também do que se denomina hoje ciências humanas; 

    elas desenham, quando se lhes faz a análise arqueológica, configurações perfeitamente positivas; mas, desde que se determinam essas configurações e a maneira como estão dispostas na epistémê moderna, compreende-se por que não podem ser ciências: o que as torna possíveis, com efeito, é uma certa situação de “vizinhança” em relação à biologia, à economia, à filologia (ou à linguística); elas só existem na medida em que se alojam ao lado destas – ou antes, debaixo delas, no seu espaço de projeção. Com elas mantêm, entretanto, uma relação que é radicalmente diferente daquela que se pode estabelecer entre duas ciências “conexas” ou “afins”: essa relação, com efeito, supõe a transferência de modelos exteriores na dimensão do inconsciente e da consciência e o refluxo da reflexão crítica em direção ao próprio lugar donde vêm esses modelos. 

    Inútil, pois, dizer que as “ciências humanas” são falsas ciências; simplesmente não são ciências; a configuração que define sua positividade e as enraíza na epistémê moderna coloca-as, ao mesmo tempo, fora da situação de serem ciências; e se se perguntar então por que assumiram esse título, bastará lembrar que pertence à definição arqueológica de seu enraizamento o fato de que elas requerem e acolhem a transferência de modelos tomados de empréstimo a ciências. 

    Não é, pois, a irredutibilidade do homem, aquilo que se designa como sua invencível transcendência, nem mesmo sua complexidade demasiado grande que o impede de tornar-se objeto de ciência. 

    A cultura ocidental constituiu, sob o nome de homem, um ser que, por um único e mesmo jogo de razões, deve ser domínio positivo do saber e não pode ser objeto de ciência.

    As palavras e as coisas:
    uma arqueologia das ciências humanas;

    Capítulo X – As ciências humanas;
    tópico III. Os três modelos

    II. A forma das ciências humanas

    II. A forma das ciências humanas

    É preciso esboçar agora a forma dessa positividade. 

    De ordinário, tenta-se defini-la em função das matemáticas: 

    • quer porque se busca aproximá-la o mais possível destas, fazendo o inventário de tudo o que nas ciências humanas é matematizável e supondo que tudo o que não é suscetível de semelhante formalização não recebeu ainda sua positividade científica; 
    • quer porque se tenta, ao contrário, distinguir com cuidado o domínio do matematizável e aquele outro que lhe seria irredutível, porque seria o lugar da interpretação, porque se lhes aplicariam sobretudo os métodos da compreensão, porque se acharia estreitado em torno do pólo clínico do saber. 

    Semelhantes análises não são somente cansativas porque gastas, mas antes de tudo porque carecem de pertinência. Certamente, não há dúvida de que essa forma de saber empírico que se aplica ao homem (e que, para obedecer à convenção, pode-se ainda chamar de “ciências humanas” antes mesmo de saber em que sentido e dentro de que limites podem ser denominadas “ciências”) tem relação com as matemáticas: como qualquer outro domínio do saber, elas podem, sob certas condições, servir-se do instrumental matemático; alguns de seus procedimentos, muitos dos seus resultados podem ser formalizados. 

    É, seguramente, de primeira importância, conhecer esses instrumentos, poder praticar essas formalizações, definir os níveis em que podem ser efetuadas; é, sem dúvida, interessante para a história saber como Condorcet pôde aplicar o cálculo das probabilidades à política, como Fechner definiu a relação logarítmica entre o crescimento da sensação e o da excitação, como os psicólogos contemporâneos se servem da teoria da informação para compreender os fenômenos da aprendizagem. 

    Mas, apesar da especificidade dos problemas colocados, é pouco provável que a relação com as matemáticas (as possibilidades de matematização, ou a resistência a todos os esforços de formalização) seja constitutiva das ciências humanas na sua positividade singular. E isso por duas razões: 

    • porque, no essencial, elas têm esses problemas em comum com muitas outras disciplinas (como a biologia, a genética) ainda que eles não sejam, aqui e lá, identicamente os mesmos; 
    • e sobretudo porque a análise arqueológica não descortinou, no a priori histórico das ciências humanas, uma forma nova das matemáticas ou um brusco avanço destas no domínio do humano, mas, sim, muito mais uma espécie de retraimento da máthêsis, uma dissociação de seu campo unitário e a liberação, em relação à ordem linear das menores diferenças possíveis, de organizações empíricas como a vida, a linguagem e o trabalho. 

    Nesse sentido, o aparecimento do homem e a constituição das ciências humanas (ainda que sob a forma de um projeto) seriam correlativos de uma espécie de “des-matematização”. 

    Dir-se-á, sem dúvida, que essa dissociação de um saber concebido por inteiro como máthêsis não era um recuo das matemáticas, pela simples razão de que esse saber jamais conduzira (salvo em astronomia e sobre certos pontos de física) a uma matematização efetiva; ao desaparecer, ele antes liberava a natureza e todo o campo das empiricidades para uma aplicação, a cada instante limitado e controlado, das matemáticas; os primeiros grandes progressos da física matemática, as primeiras utilizações maciças do cálculo das probabilidades não datam do momento em que se renunciou a constituir imediatamente uma ciência geral das ordens não-quantificáveis? 

    Com efeito, não se pode negar que a renúncia a uma máthêsis (ao menos provisoriamente) permitiu, em certos domínios do saber, suspender o obstáculo da qualidade, e aplicar o instrumental matemático lá onde ele ainda não penetrara. Mas se, ao nível da física, a dissociação do projeto da máthêsis constitui uma única e mesma coisa com a descoberta de novas aplicações das matemáticas, o mesmo não ocorreu em todos os domínios: a biologia, por exemplo, além de uma ciência das ordens qualitativas, constituiu-se como análise das relações entre os órgãos e as funções, estudo das estruturas e dos equilíbrios, investigações sobre sua formação e seu desenvolvimento na história dos indivíduos ou das espécies; tudo isso não impediu que a biologia utilizasse as matemáticas e que estas pudessem aplicar-se à biologia bem mais amplamente que no passado. 

    Todavia, não foi em sua relação com as matemáticas que a biologia assumiu sua autonomia e definiu sua positividade. O mesmo ocorreu com as ciências humanas: 

    • foi o retraimento da máthêsis e não o avanço das matemáticas que permitiu ao homem constituir-se como objeto de saber; 
    • foi o envolvimento do trabalho, da vida e da linguagem em torno deles próprios que prescreveu, do exterior, o aparecimento desse novo domínio; 
    • e é o aparecimento desse ser empírico-transcendental, desse ser cujo pensamento é indefinidamente tramado com o impensado, desse ser sempre separado de uma origem que lhe é prometida na imediatidade do retorno – é esse aparecimento que dá às ciências humanas sua feição singular. 

    Também aí, como em outras disciplinas, pode ser que a aplicação das matemáticas tenha sido facilitada (e o seja cada vez mais) por todas as modificações que se produziram, no começo do século XIX, no saber ocidental. Imaginar, porém, que as ciências humanas definiram seu projeto mais radical e inauguraram sua história positiva no dia em que se pretendeu aplicar o cálculo das probabilidades aos fenômenos da opinião política e utilizar logaritmos para medir a intensidade crescente das sensações é tomar um contra-efeito de superfície pelo acontecimento fundamental.

    Em outros termos, entre as três dimensões que abrem às ciências humanas seu espaço próprio e lhes facultam o volume em que elas tomam corpo, 

    • a das matemáticas é talvez a menos problemática; 

    é com ela, em todo o caso, que as ciências humanas entretêm as relações mais claras, mais serenas e, de certo modo, mais transparentes: tanto mais que o recurso às matemáticas, sob uma forma ou outra, sempre foi a maneira mais simples de emprestar ao saber positivo sobre o homem um estilo, uma forma, uma justificação científica. Em contrapartida, as dificuldades mais fundamentais, as que permitem melhor definir o que são, em sua essência, as ciências humanas, alojam-se do lado das outras duas dimensões do saber: 

    • aquela em que se desenrola a analítica da finitude 
    • e aquela ao longo da qual se repartem as ciências empíricas que tomam por objeto a linguagem, a vida e o trabalho.

    As ciências humanas, com efeito, endereçam-se ao homem, na medida em que ele vive, em que fala, em que produz. 

    • É como ser vivo que ele cresce, que tem funções e necessidades, que vê abrir-se um espaço cujas coordenadas móveis ele articula em si mesmo; de um modo geral, sua existência corporal fá-Io entrecruzar-se, de parte a parte, com o ser vivo; 
    • produzindo objetos e utensílios, trocando aquilo de que tem necessidade, organizando toda uma rede de circulação ao longo da qual perpassa o que ele pode consumir e em que ele próprio se acha definido como elemento de troca, aparece ele em sua existência imediatamente imbricado com os outros; 
    • enfim, porque tem uma linguagem, pode constituir por si todo um universo simbólico, em cujo interior se relaciona com seu passado, com coisas, com outrem, a partir do qual pode imediatamente construir alguma coisa com um saber (particularmente esse saber que tem de si mesmo e do qual as ciências humanas desenham uma das formas possíveis). 

    Pode-se, portanto, fixar o lugar das ciências do homem nas vizinhanças, nas fronteiras imediatas e em toda a extensão dessas ciências em que se trata da vida, do trabalho e da linguagem. 

    Não chegam estas justamente a se formar na época em que, pela primeira vez, o homem se oferece à possibilidade de um saber positivo? 

    Contudo, nem a biologia, nem a economia, nem a filologia devem ser tomadas como as primeiras ciências humanas nem como as mais fundamentais. 

    Isso se reconhece sem dificuldade no caso da biologia, que se dirige a muitos outros seres vivos além do homem; 

    tem-se mais dificuldade em admiti-lo no caso da economia ou da filologia, que têm por domínio próprio e exclusivo atividades específicas do homem. 

    Mas não se pergunta por que é que a biologia ou a fisiologia humanas, por que é que a anatomia dos centros corticais da linguagem não podem, de modo algum, ser consideradas como ciências do homem. 

    É que o objeto destas últimas jamais se dá ao modo de ser de um funcionamento biológico (nem mesmo sob sua forma singular e como que a de seu prolongamento no homem); ele é antes seu reverso, sua marca no vazio; ele começa lá onde pára – não a ação ou os efeitos – mas o ser próprio desse funcionamento – lá onde se liberam representações, verdadeiras ou falsas, claras ou obscuras, perfeitamente conscientes ou embrenhadas na profundidade de alguma sonolência, observáveis direta ou indiretamente, oferecidas naquilo que o próprio homem enuncia ou detectáveis somente do exterior; a busca das ligações intracorticais entre os diferentes centros de integração da linguagem (auditivos, visuais, motores) não é da alçada das ciências humanas; mas estas encontrarão seu espaço de desempenho, desde que se interrogue esse espaço de palavras, essa presença ou esse esquecimento de seu sentido, essa distância entre o que se quer dizer e a articulação em que essa intenção é investida, coisas de que o sujeito talvez não tenha consciência, mas que não teriam nenhum modo de ser assinalável se esse mesmo sujeito não tivesse representações.

    De um modo mais geral, o homem, para as ciências humanas, 

    • não é esse ser vivo que tem uma forma bem particular (uma fisiologia bastante especial e uma autonomia quase única); 
    • é esse ser vivo que, do interior da vida à qual pertence inteiramente e pela qual é atravessado em todo o seu ser, constitui representações graças às quais ele vive e a partir das quais detém esta estranha capacidade de poder se representar justamente a vida. 

    Do mesmo modo, conquanto o homem seja a única espécie no mundo que trabalha, ao menos aquela em que a produção, a distribuição, o consumo dos bens assumiram tanta importância e receberam formas tão múltiplas e tão diferenciadas, nem por isso a economia é uma ciência humana. 

    Dir-se-á talvez que esta, 

    • para definir leis que são contudo interiores aos mecanismos da produção (como o acúmulo do capital ou as relações entre as taxas dos salários e os custos de produção), recorre a comportamentos humanos e a uma representação que o fundamentam (o interesse, a busca do lucro máximo, a tendência para a poupança); mas, ao fazê-lo, ela utiliza as representações como requisito de um funcionamento (que passa, com efeito, por uma atividade humana explícita); 
    • em contrapartida, só haverá ciência do homem se nos dirigirmos à maneira como os indivíduos ou os grupos se representam seus parceiros na produção e na troca, o modo como esclarecem, ou ignoram, ou mascaram esse funcionamento e a posição que aí ocupam, a maneira como se representam a sociedade em que isso ocorre, o modo como se sentem integrados a ela ou isolados, dependentes, submetidos ou livres; 

    o objeto das ciências humanas 

    • não é esse homem que, desde a aurora do mundo, ou o primeiro grito de sua idade de ouro, está destinado ao trabalho; 
    • é esse ser que, do interior das formas da produção pelas quais toda a sua existência é comandada, forma a representação dessas necessidades, da sociedade pela qual, com a qual ou contra a qual as satisfaz, de sorte que, a partir daí, pode ele finalmente se dar a representação da própria economia. 

    Quanto à linguagem, ocorre o mesmo: embora o homem seja, no mundo, o único ser que fala, 

    • não constitui ciência humana conhecer as mutações fonéticas, o parentesco das línguas, a lei dos desvios semânticos; 
    • em contrapartida, poder-se-á falar de ciência humana desde que se busque definir a maneira como os indivíduos ou os grupos se representam as palavras, utilizam sua forma e seu sentido, compõem discursos reais, mostram e escondem neles o que pensam, dizem, talvez à sua revelia, mais ou menos do que pretendem, deixam desses pensamentos, em todo o caso, uma massa de traços verbais que é preciso decifrar e restituir, tanto quanto possível, à sua vivacidade representativa. 

    O objeto das ciências humanas 

    • não é, pois, a linguagem (falada, contudo, apenas pelos homens), 
    • mas, sim, esse ser que, do interior da linguagem pela qual está cercado, se representa, ao falar, o sentido das palavras ou das proposições que enuncia e se dá, finalmente, a representação da própria linguagem.

    Vê-se que as ciências humanas 

    • não são uma análise do que o homem é por natureza; 
    • são antes uma análise que se estende entre o que o homem é em sua positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo ser saber (ou buscar saber) o que é a vida, em que consistem a essência do trabalho e suas leis, e de que modo ele pode falar. 

    As ciências humanas ocupam, pois, essa distância que separa (não sem uni-Ias) a biologia, a economia, a filologia daquilo que lhes dá possibilidade no ser mesmo do homem. Seria errôneo, portanto, fazer das ciências humanas o prolongamento, interiorizado na espécie humana, no seu organismo complexo, na sua conduta e na sua consciência, dos mecanismos biológicos; não menos errôneo colocar, no interior das ciências humanas, a ciência da economia e da linguagem (cuja irredutibilidade às ciências humanas é manifestada pelo esforço para constituir uma economia e uma linguística puras). 

    De fato, nem as ciências humanas estão no interior dessas ciências, nem as interiorizam, inclinando-as em direção à subjetividade do homem; se as retomam na dimensão da representação, é antes reassumindo-as em sua vertente exterior, deixando-as na sua opacidade, acolhendo como coisas os mecanismos e os funcionamentos que elas isolam, interrogando estes últimos não no que são, mas no que deixam de ser quando se abre o espaço da representação; e, a partir daí, elas mostram como pode nascer e desdobrar-se uma representação do que eles sejam. 

    Elas reconduzem sub-repticiamente as ciências da vida, do trabalho e da linguagem, para o lado dessa analítica da finitude que mostra como pode o homem haver-se, no seu ser, com essas coisas que ele conhece e conhecer essas coisas que determinam, na positividade, seu modo de ser. 

    Mas aquilo que a analítica requer na interioridade ou ao menos na dependência profunda de um ser que não deve sua finitude senão a si mesmo, as ciências humanas o desenvolvem na exterioridade do conhecimento. 

    É por isso que o específico das ciências humanas não é o direcionamento a certo conteúdo (esse objeto singular que é o ser humano); é muito mais um caráter puramente formal: o simples fato de estarem, em relação às ciências em que o ser humano é dado como objeto (exclusivo para a economia e a filologia, ou parcial para a biologia), numa posição de reduplicação, e de que essa reduplicação possa valer a fortiori para elas mesmas.

    Essa posição torna-se perceptível em dois níveis: 

    • as ciências humanas não tratam a vida, o trabalho e a linguagem do homem na maior transparência em que se podem dar, mas naquela camada de condutas, de comportamentos, de atitudes, de gestos já feitos, de frases já pronunciadas ou escritas, em cujo interior eles foram dados antecipadamente, numa primeira vez, àqueles que agem, se conduzem, trocam, trabalham e falam; 
    • em outro nível (é sempre a mesma propriedade formal, mas desenvolvida até o ponto extremo e mais raro), é sempre possível tratar, em estilo de ciências humanas (de psicologia, de sociologia, de história das culturas ou das idéias ou das ciências) o fato de haver para certos indivíduos ou certas sociedades alguma coisa como um saber especulativo da vida, da produção e da linguagem – em última análise, uma biologia, uma economia e uma filologia. 

    Sem dúvida, isso é apenas a indicação de uma possibilidade que raramente é efetuada e que talvez não seja suscetível, ao nível das empiricidades, de oferecer uma grande riqueza; mas, o fato de que ela existe como distância eventual, como espaço de recuo dado às ciências humanas em relação àquilo mesmo donde elas vêm, o fato também de que esse jogo pode aplicar-se a elas próprias (podem-se sempre fazer as ciências humanas das ciências humanas, a psicologia da psicologia, a sociologia da sociologia etc.) bastam para mostrar sua singular configuração. 

    Em relação à biologia, à economia, às ciências da linguagem, elas não estão, portanto, em carência de exatidão ou de rigor; estão antes, como ciências da reduplicação, numa posição “metaepistemológica”. 

    Ainda assim, o prefixo não está talvez muito bem escolhido: pois só se fala de metalinguagem quando se trata de definir as regras de interpretação de uma linguagem primeira. 

    Aqui as ciências humanas, quando reduplicam as ciências da linguagem, do trabalho e da vida, quando, na sua mais fina extremidade, se reduplicam a si mesmas, não visam a estabelecer um discurso formalizado: ao contrário, elas embrenham o homem que tomam por objeto no campo da finitude, da relatividade, da perspectiva – no campo da erosão indefinida do tempo. 

    Talvez fosse melhor falar a seu propósito de posição “ana” ou “hipoepistemológica”; se libertássemos este último prefixo do que pode ter de pejorativo, ele explicaria sem dúvida as coisas: faria compreender que a invencível impressão de fluidez, de inexatidão, de imprecisão que deixam quase todas as ciências humanas não é senão o efeito de superfície daquilo que permite defini-Ias em sua positividade.

    As palavras e as coisas:
    uma arqueologia das ciências humanas
    Capítulo X – As ciências humanas;
    tópico II – A forma das ciências humanas

    IV. A história

    A História

    Falou-se das ciências humanas; falou-se destas grandes regiões que a psicologia, a sociologia, a análise das literaturas e das mitologias aproximadamente delimitam. 

    Não se falou da História, embora seja a primeira e como que a mãe de todas as ciências do homem, embora seja tão velha talvez quanto a memória humana. Ou melhor, é por esta razão mesma que ela permaneceu até agora em silêncio. 

    Com efeito, ela talvez não tenha lugar entre as ciências humanas nem ao lado delas: é provável que entretenha com elas uma relação estranha, indefinida, indelével e mais fundamental do que o seria uma relação de vizinhança num espaço comum. 

    É verdade que a História existiu bem antes da constituição das ciências humanas; desde os confins da idade grega, exerceu ela na cultura ocidental um certo número de funções maiores: memória, mito, transmissão da Palavra e do Exemplo, veículo da tradição, consciência crítica do presente, decifração do destino da humanidade, antecipação do futuro ou promessa de um retorno.

     O que caracterizava esta História – o que, ao menos, pode defini-Ia, em seus traços gerais, em oposição à nossa – é que, regulando o tempo dos humanos pelo devir do mundo (numa espécie de grande cronologia cósmica, como nos estóicos), ou, inversamente, estendendo até às menores parcelas da natureza o princípio e o movimento de uma destinação humana (um pouco à maneira da Providência cristã), concebia-se uma grande história plana, uniforme em cada um de seus pontos, que teria arrastado num mesmo fluir, numa mesma queda ou numa mesma ascensão, num mesmo ciclo, todos os homens e, com eles, as coisas, os animais, cada ser vivo ou inerte, e até os semblantes mais calmos da terra. 

    Ora, é esta unidade que se achou fraturada no começo do século XIX, na grande reviravolta da epistémê ocidental: 

    • descobriu-se uma historicidade própria à natureza; 
    • definiu-se mesmo, para cada grande tipo do ser vivo, formas de ajustamento ao meio que iam permitir, em seguida, definir seu perfil de evolução; 
    • mais ainda, pôde-se mostrar que atividades tão singularmente humanas, como o trabalho ou a linguagem, detinham, em si mesmas, uma historicidade que não podia encontrar seu lugar na grande narrativa comum às coisas e aos homens; 
    • a produção tem modos de desenvolvimento, o capital, modos de acumulação, os preços, leis de oscilação e mudanças que não podem nem restringir-se às leis naturais nem reduzir-se à marcha geral da humanidade; 
    • do mesmo modo a linguagem modifica-se não tanto com as migrações, o comércio e as guerras, ao sabor do que sucede ao homem ou ao capricho do que ele pode inventar, mas, sim, sob condições que pertencem propriamente às formas fonéticas e gramaticais de que ela é constituída; 

    e se se pôde dizer que as diversas linguagens nascem, vivem, perdem sua força envelhecendo e acabam por morrer, esta metáfora biológica não é feita para dissolver sua história num tempo que seria o da vida, mas, antes, para sublinhar que também elas têm leis internas de funcionamento e que sua cronologia se desenvolve segundo um tempo que decorre primeiramente da sua coerência singular.

    Tende-se comumente a crer que o século XIX, por razões na maior parte políticas e sociais, dirigiu uma atenção mais aguda à história humana, que se abandonou a idéia de uma ordem ou de um plano contínuo do tempo, assim como a de um progresso ininterrupto, e que, pretendendo narrar sua própria ascensão, a burguesia encontrou, no calendário de sua vitória, a espessura histórica das instituições, o peso dos hábitos e das crenças, a violência das lutas, a alternância ou abreviar a validade das leis econômicas, pela consciência que delas tem e pelas instituições que organiza a partir delas ou em tomo delas, que lhe permite, enfim, exercer sobre a linguagem, em cada uma das palavras que pronuncia, uma espécie de pressão interior constante que, insensivelmente, fá-lo deslizar sobre si mesmo em cada instante do tempo? 

    Assim aparece, por trás da história das positividades, aquela, mais radical, do próprio homem. História que concerne agora ao ser mesmo do homem, pois que se evidencia que não somente ele “tem”, em tomo de si, “História”, mas que ele mesmo é, em sua historicidade própria, aquilo pelo que se delineia uma história da vida humana, uma história da economia, uma história das linguagens. 

    Haveria, pois, a um nível muito profundo, uma historicidade do homem que seria, por si mesma, sua própria história, mas também a dispersão radical que funda todas as outras. É justamente essa erosão primeira que o século XIX buscou na sua preocupação de tudo historicizar, de escrever, a propósito de cada coisa, uma história geral, de remontar incessantemente no tempo e de repor as coisas mais estáveis na liberação do tempo.

    Também aí, é preciso, sem dúvida, rever a maneira como se escreve tradicionalmente a história da História; tem-se o hábito de dizer que, com o século XIX, cessou a pura crônica dos acontecimentos, a simples memória de um passado povoado somente de indivíduos e de acidentes, e que se buscaram as leis gerais do devir. 

    De fato, nenhuma história foi mais “explicativa”, mais preocupada com leis gerais e com constantes que as da idade clássica – quando o mundo e o homem, num só movimento, se incorporavam numa história única. 

    A partir do século XIX, o que vem à luz é uma forma nua da historicidade humana – o fato de que o homem enquanto tal está exposto ao acontecimento. Daí a preocupação, seja de encontrar leis para esta pura forma (e têm-se filosofias como as de Spengler), seja de defini-Ia a partir do fato de que o homem vive, de que o homem trabalha, de que o homem fala e pensa: e têm-se as interpretações da História a partir do homem considerado como espécie viva, ou a partir das leis da economia, ou a partir dos conjuntos culturais.

    Em todo o caso, essa disposição da História no espaço epistemológico é de grande importância para sua relação com as ciências humanas. 

    Uma vez que o homem histórico é o homem que vive, trabalha e fala, todo conteúdo da História, qualquer que seja, concerne à psicologia, à sociologia ou às ciências da linguagem. 

    Mas, inversamente, uma vez que o ser humano se tornou, de ponta a ponta, histórico, nenhum dos conteúdos analisados pelas ciências humanas pode ficar estável em si mesmo nem escapar ao movimento da História. 

    E isto por duas razões: 

    • porque a psicologia, a sociologia, a filosofia, mesmo quando aplicadas a objetos – isto é, a homens – que lhe são contemporâneos, não visar jamais senão a cortes sincrônicos no interior de uma historicidade que os constitui e os atravessa;
    • porque as formas assumidas sucessivamente pelas ciências humanas, a escolha que elas fazem de seu objeto, os métodos que lhes aplicam são dados pela História, incessantemente levados por ela e modificados a seu gosto. 

    Quanto mais a História tenta ultrapassar seu próprio enraizamento histórico, quanto mais se esforça por atingir, para além da relatividade histórica de sua origem e de suas opções, a esfera da universalidade, tanto mais claramente traz ela os estigmas do seu nascimento histórico, tanto mais evidentemente aparece através dela a história de que ela, mesma faz parte (e disso, também Spengler e todos os filósofos da história dão testemunho); inversamente, quanto mais ela aceita sua relatividade, quanto mais se entranha no movimento que é comum a ela e ao que ela conta, tanto mais então ela tende à exiguidade da narrativa, e todo o conteúdo positivo que ela se conferia através das ciências humanas se dissipa.

    A História forma, pois, para as ciências humanas, uma esfera de acolhimento ao mesmo tempo privilegiada e perigosa. 

     

    A cada ciência do homem ela dá um fundo básico que a estabelece, lhe fixa um solo e como que uma pátria: ela determina a área cultural – o episódio cronológico, a inserção geográfica – em que se pode reconhecer, para este saber, sua validade; cerca-as, porém, com uma fronteira que as limita e, logo de início, arruína sua pretensão de valerem no elemento da universalidade. 

    Desta maneira, ela revela que se o homem – antes mesmo de o saber – sempre esteve submetido às determinações que a psicologia, a sociologia, a análise das linguagens podem manifestar, nem por isso ele é o objeto intemporal de um saber que, pelo menos ao nível de seus direitos, seria, ele próprio, sem idade. 

    Ainda quando evitam toda referência à história, as ciências humanas (e, a esse título, pode-se colocar a história entre elas) não fazem mais que pôr em relação um episódio cultural com outro (aquele a que elas se aplicam como ao objeto delas, e aquele em que se enraízam quanto à sua existência, seu modo de ser, seus métodos e seus conceitos); e se elas se aplicam à sua própria sincronia, é ao próprio homem que reportam o episódio cultural donde procedem. 

    De sorte que o homem jamais aparece na sua positividade sem que esta seja logo limitada pelo ilimitado da História.

    Vê-se reconstituir aqui um movimento análogo ao que animava interiormente todo o domínio das ciências do homem: tal como foi analisado acima, este movimento remetia perpetuamente das positividades que determinam o ser do homem à finitude que faz aparecer estas mesmas positividades; de sorte que as próprias ciências eram arrastadas nesta grande oscilação, a qual, porém, elas, por sua vez, retornavam na forma de sua própria positividade, buscando ir, sem cessar, do consciente ao inconsciente. 

    Ora, eis que, com a História, uma oscilação semelhante recomeça; desta feita, porém, ela não se exerce 

    • entre a positividade do homem tomado como objeto (e manifestado empiricamente pelo trabalho, a vida e a linguagem) 
    • e os limites radicais de seu ser; 

    exerce-se 

    • entre os limites temporais que definem as formas singulares do trabalho, da vida e da linguagem, 
    • e a positividade histórica do sujeito que, pelo conhecimento, tem acesso a eles. 

    Também agora, o sujeito e o objeto estão ligados num questionamento recíproco; mas, 

    • enquanto que antes este questionamento se fazia no interior mesmo do conhecimento positivo e pelo progressivo desvelamento do inconsciente pela consciência, 
    • agora ele se faz nos confins exteriores do objeto e do sujeito; ele designa a erosão a que ambos estão submetidos, a dispersão que os afasta um do outro, arrancando-os a uma positividade calma, enraizada e definitiva. 

    Desvelando o inconsciente como seu objeto mais fundamental, as ciências humanas mostravam que havia sempre o que pensar ainda no que já era pensado ao nível manifesto; descobrindo a lei do tempo como limite externo das ciências humanas, a História mostra que tudo o que é pensado o será ainda por um pensamento que ainda não veio à luz. 

    Mas talvez não tenhamos aqui, sob as formas concretas do inconsciente e da História, senão as duas faces dessa finitude que, descobrindo que era por si mesma seu próprio fundamento, fez aparecer, no século XIX, a figura do homem: uma finitude sem infinito é, sem dúvida, uma finitude que jamais tem fim, que está sempre em recuo em relação a si mesma, à qual resta ainda alguma coisa para pensar no instante mesmo em que ela pensa, à qual resta sempre tempo para pensar de novo o que ela pensou.

    No pensamento moderno, o historicismo e a analítica da finitude estão frente a frente. 

    O historicismo é uma forma de fazer valer por ela mesma a perpétua relação critica que se exerce entre a História e as ciências humanas. 

    Mas ele a instaura somente ao nível das positividades: o conhecimento positivo do homem é limitado pela positividade histórica do sujeito que conhece, de sorte que o momento da finitude é dissolvido no jogo de uma relatividade à qual não é possível escapar e que vale, ela mesma, como um absoluto. 

    Ser finito seria, muito simplesmente, ser tomado pelas leis de uma perspectiva que, ao mesmo tempo, permite uma certa apreensão – do tipo da percepção ou da compreensão – e impede que esta jamais seja intelecção universal e definitiva. 

    Todo conhecimento se enraíza numa vida, numa sociedade, numa linguagem que têm uma história; e, nesta história mesma, ele encontra o elemento que lhe permite comunicar-se com outras formas de vida, outros tipos de sociedade, outras significações: é por isto que o historicismo implica sempre uma filosofia ou, ao menos, uma certa metodologia da compreensão viva (no elemento da Lebenswelt), da comunicação inter-humana (sobre o fundo das organizações sociais) e da hermenêutica (como retomada, através do sentido manifesto de um discurso, de um sentido ao mesmo tempo segundo e primeiro, isto é, mais escondido porém mais fundamental). 

    Com isto, as diferentes positividades formadas pela História e nela depositadas podem entrar em contato umas com as outras, envolverem-se à maneira de conhecimento, liberarem o conteúdo que nelas dormita; não são então os próprios limites que aparecem no seu rigor imperioso, mas totalidades parciais, totalidades que se acham limitadas de fato, totalidades cujas fronteiras se podem, até certo ponto, alterar, mas que jamais se estenderão no espaço de uma análise definitiva e também jamais se elevarão até a totalidade absoluta. 

    É por isto que a análise da finitude não cessa de reivindicar, contra o historicismo, a parte de que este descuidara: ela tem por projeto fazer surgir, no fundamento de todas as positividades e antes delas, a finitude que as torna possíveis; 

    • lá onde o historicismo buscava a possibilidade e a justificação de relações concretas entre totalidades limitadas, cujo modo de ser era dado, de antemão, pela vida, ou pelas formas sociais, ou pelas significações da linguagem, 
    • a analítica da finitude quer interrogar esta relação do ser humano com o ser que, designando a finitude, torna possíveis as positividades em seu modo de ser concreto.

    As palavras e as coisas:
    uma arqueologia das ciências humanas;
    Capítulo X – As ciências humanas;
    tópico IV – A História

    I. O triedro dos saberes

    O triedro dos saberes e o habitat das Ciências Humanas

    I. O triedro dos saberes

    Triedro dos saberes: espaço interior

    Clicando na figura ao lado será mostrada uma animação visual com um resumo rápido de três tópicos do
    capítulo X – As ciências humanas,
    do livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.

    São eles:

    • tópico I. O triedro dos saberes;
    • tópico II. A forma das ciências humanas;
    • tópico III. Os três modelos

    A figura ao lado mostra uma animação visual que associa ao conceito abaixo de ‘modo de ser do homem’ no pensamento moderno, a uma estrutura na qual as ideias intervenientes expressas pelos respectivos elementos de imagem, ocupam seus lugares em uma estrutura proposta.

    O modo de ser do homem no pensamento moderno

    “O modo de ser do homem,
    tal como se constituiu no pensamento moderno,
    permite-lhe desempenhar dois papéis: 
    está, ao mesmo tempo,

    • no fundamento de todas as positividades,

    presente, de uma forma que não se
    pode sequer dizer privilegiada,

    • no elemento das coisas empíricas.”
    Os dois papéis do homem no pensamento de depois da
    descontinuidade epistemológica ocorrida entre 1775 e 1825

    Segue o texto formatado do tópico I. O triedro dos saberes;  do Capítulo X – As ciências humanas

    O modo de ser do homem, tal como se constituiu no pensamento moderno, permite-lhe desempenhar dois papéis: 

    está, ao mesmo tempo,

    • no fundamento de todas as positividades,

    presente, de uma forma que não se
    pode sequer dizer privilegiada,

    • no elemento das coisas empíricas.

    Esse fato [o modo de ser do homem em sua constituição no pensamento moderno] – e não se trata aí da essência em geral do homem, mas pura e simplesmente desse a priori histórico que, desde o século XIX, serve de solo quase evidente ao nosso pensamento – esse fato é, sem dúvida, decisivo para o estatuto a ser dado às “ciências humanas”, a esse corpo de conhecimentos (mas mesmo esta palavra é talvez demasiado forte: digamos, para sermos mais neutros ainda, a esse conjunto de discursos) que toma por objeto o homem no que ele tem de empírico.

    A primeira coisa a constatar é que as ciências humanas não receberam por herança um certo domínio já delineado, dimensionado talvez em seu conjunto, mas não-desbravado, que elas teriam por tarefa elaborar com conceitos enfim científicos e métodos positivos; o século XVIII não lhes transmitiu, sob o nome de homem ou de natureza humana, um espaço circunscrito exteriormente, mas ainda vazio, que elas tivessem, em seguida, a tarefa de cobrir e analisar.

    O campo epistemológico que percorrem as ciências humanas não foi prescrito de antemão: 

    nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, qualquer que fosse, nenhuma observação do corpo humano, nenhuma análise da sensação, da imaginação ou das paixões, jamais encontrou, nos séculos XVII e XVIII, alguma coisa como o homem; pois o homem não existia (assim como a vida, a linguagem e o trabalho); e as ciências humanas não apareceram quando, sob o efeito de algum racionalismo premente, de algum problema científico
    não-resolvido, de algum interesse prático, decidiu-se fazer passar o homem (por bem ou por mal, e com maior ou menor êxito) para o campo dos objetos científicos – em cujo número, talvez, não esteja ainda provado que seja possível incluí-lo de modo absoluto;

    elas apareceram no dia em que
    o homem se constituiu na cultura ocidental,
    ao mesmo tempo como

    • o que é necessário pensar
    • e o que se deve saber.

    Certamente, não resta dúvida de que a emergência histórica de cada uma das ciências humanas tenha ocorrido por ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de ordem teórica ou prática; 

    • por certo foram necessárias novas normas impostas pela sociedade industrial aos indivíduos para que, lentamente, no decurso do século XIX, a psicologia se constituísse como ciência;

     

    • também foram necessárias, sem dúvida, as ameaças que, desde a Revolução, pesaram sobre os equilíbrios sociais e sobre aquele mesmo que instaurara a burguesia, para que aparecesse uma reflexão de tipo sociológico.

    Mas se essas referências podem bem explicar por que é que foi realmente em tal circunstância determinada e para responder a tal questão precisa que essas ciências se articularam, sua possibilidade intrínseca, o fato nu de que, pela primeira vez, desde que existem seres humanos e que vivem em sociedade, o homem, isolado ou em grupo, se tenha tornado objeto de ciência – isso não pode ser considerado nem tratado como um fenômeno de opinião: é um acontecimento na ordem do saber.

    E esse acontecimento produziu-se, por sua vez, numa redistribuição geral da epistémê: quando, 

    • abandonando o espaço da representação,
      • os seres vivos alojaram-se na profundeza específica da vida,
      • as riquezas no surto progressivo das formas da produção,
      • as palavras no devir das linguagens.

    Nessas condições, era necessário que o conhecimento do homem surgisse, com seu escopo científico, como contemporâneo e do mesmo veio que

    • a biologia,
    • a economia
    • e a filologia,

    de tal sorte que nele se viu, muito naturalmente, um dos mais decisivos progressos realizados, na história da cultura européia, pela racionalidade empírica.

    Mas, como ao mesmo tempo a teoria geral da representação desaparecia e impunha-se, em contrapartida, a necessidade de interrogar o ser do homem como fundamento de todas as
    positividades, não podia deixar de produzir-se um  desequilíbrio: 

    o homem tornava-se aquilo a partir do qual todo conhecimento podia ser constituído em sua evidência imediata e não-problematizada; 

    tornava-se, a fortiori, aquilo que autoriza o questionamento de todo conhecimento do homem. 

    Daí esta dupla e inevitável contestação: 

    • a que institui o perpétuo debate entre as ciências do homem e as ciências propriamente ditas, tendo as primeiras a pretensão invencível de fundar as segundas, que, sem cessar são obrigadas a buscar seu próprio fundamento, a justificação de seu método e a purificação de sua história, contra o “psicologismo”, contra o “sociologismo”, contra o “historicismo”; 
    • e a que institui o perpétuo debate entre a filosofia, que objeta às ciências humanas a ingenuidade com a qual tentam fundar-se a si mesmas, e essas ciências humanas, que reivindicam como seu objeto próprio o que teria constituído outrora o domínio da filosofia.

    (os três eixos e as três faces do triedro dos saberes)

    As três faces do conhecimento

    Interrogado a esse nível arqueológico, o campo da epistémê moderna não se ordena conforme o ideal de uma matematização perfeita e não desenrola, a partir da pureza formal, uma longa seqüência de conhecimentos descendentes, cada vez mais carregados de empiricidade. Antes, deve-se representar o domínio da epistémê moderna com um espaço volumoso e aberto segundo três dimensões.

    • Eixo E3: Numa delas, situar-se-iam as ciências matemáticas e físicas, para as quais a ordem é sempre um encadeamento dedutivo e linear de proposições
      evidentes ou verificadas;
    • Eixo E1: haveria, em outra dimensão, ciências (como as
      da linguagem, da vida, da produção e da distribuição das riquezas) que procedem ao estabelecimento de relações entre elementos descontínuos mas análogos, de sorte que elas pudessem estabelecer entre eles relações causais e constantes de estrutura.

    Essas duas primeiras dimensões definem entre si

    • Face F1: um plano comum: aquele que pode aparecer, conforme o sentido em que é percorrido, como campo de aplicação das matemáticas a essas ciências empíricas, ou domínio do matematizável na linguistica, na biologia e na economia. 

    Quanto à terceira dimensão,

    • Eixo E2: seria a da reflexão filosófica, que se desenvolve como pensamento do Mesmo
    • Face F2: com [E1 – o eixo epistemológico fundamental] a dimensão da linguística, da biologia e da economia, ela [E2 – a reflexão filosófica] delineia um plano comum: lá podem aparecer, e efetivamente apareceram, as diversas filosofias da vida, do homem alienado, das formas simbólicas (quando se transpõem para a filosofia os conceitos e os problemas que nasceram nos diferentes domínios empíricos); mas, lá também apareceram, se se interrogar de um ponto de vista radicalmente filosófico o fundamento dessas empiricidades, ontologias regionais, que tentam definir o que são, em seu ser próprio, a vida, o trabalho e a linguagem; 
    • Face F3: enfim, [o eixo E2] a dimensão filosófica define com [o eixo E3] a das disciplinas matemáticas um plano comum [a face F1]: o da formalização do pensamento.

     

    (o espaço interior do triedro)

    Desse triedro epistemológico,
    as ciências humanas são excluídas,
    no sentido ao menos de que
    não podem ser encontradas
    em nenhuma das dimensões,

    nem à superfície de nenhum dos planos
    assim delineados.

    As três faces do conhecimento

    Mas, pode-se também dizer que elas são incluídas por ele, pois é no interstício  desses saberes, mais exatamente no volume definido por suas três dimensões, que elas encontram seu lugar. 

    Essa situação (menor num sentido, privilegiada noutro) coloca-as em relação com todas as outras formas de saber: 

    • têm o projeto, mais ou menos protelado, porém constante, de se conferirem ou, em todo o caso, de utilizarem, num nível ou noutro, uma formalização matemática
    • procedem segundo modelos ou conceitos tomados à biologia, à economia e às ciências da linguagem
    • endereçam-se, enfim, a esse modo de ser do homem que a filosofia busca pensar ao nível da finitude radical, enquanto elas pretendem percorrê-lo em suas manifestações empíricas. 

    É talvez essa repartição nebulosa num espaço de três dimensões que toma as ciências humanas tão difíceis de situar, que confere sua irredutível precariedade à localização destas no domínio epistemológico, que as faz aparecer ao mesmo tempo como perigosas e em perigo. 

    Perigosas, pois representam para todos os outros saberes como que um risco permanente: por certo, nem as ciências dedutivas, nem as ciências empíricas, nem a reflexão filosófica, desde que permaneçam na sua dimensão própria, arriscam-se a “passar” para as ciências humanas ou encarregar-se de sua impureza; sabe-se, porém, que dificuldades por vezes encontra o estabelecimento desses planos intermediários que unem, umas às outras, as três dimensões do espaço epistemológico; é que o menor desvio em relação a esses planos rigorosos faz cair o pensamento no domínio investido pelas ciências humanas; 

    daí o perigo 

    • do “psicologismo”, 
    • ou do “sociologismo” – 

    do que se poderia chamar, numa palavra, 

    • “antropologismo” 

    – que se torna ameaçador desde que, por exemplo, não se reflita corretamente sobre as relações entre o pensamento e a formalização, ou desde que não se analisem convenientemente os modos de ser da vida, do trabalho e da linguagem.

    A “antropologização” é, em nossos dias, o grande perigo interior do saber. Facilmente se acredita que o homem liberou-se de si mesmo, desde que descobriu que não estava nem no centro da criação, nem no núcleo do espaço, nem mesmo talvez no cume e no fim derradeiro da vida; mas, se o homem não é mais soberano no reino do mundo, se já não reina no âmago do ser, as “ciências humanas” são perigosos intermediários no espaço do saber. 

    Na verdade, porém, essa postura mesma as condena a uma instabilidade essencial. O que explica a dificuldade das “ciências humanas”, sua precariedade, sua incerteza como ciências, sua perigosa familiaridade com a filosofia, seu apoio mal definido sobre outros domínios do saber, seu caráter sempre secundário e derivado, como também sua pretensão ao universal, 

    • não é, como freqüentemente se diz, a extrema densidade de seu objeto; não é o estatuto metafisico ou a indestrutível transcendência desse homem de que elas falam, 
    • mas, antes, a complexidade da configuração epistemológica em que se acham colocadas, sua relação constante com as três dimensões que lhes confere seu espaço.

    As palavras e as coisas:
    uma arqueologia das ciências humanas
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