O triedro dos saberes e o habitat das Ciências Humanas
I. O triedro dos saberes

Clicando na figura ao lado será mostrada uma animação visual com um resumo rápido de três tópicos do
capítulo X – As ciências humanas,
do livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
São eles:
- tópico I. O triedro dos saberes;
- tópico II. A forma das ciências humanas;
- tópico III. Os três modelos
A figura ao lado mostra uma animação visual que associa ao conceito abaixo de ‘modo de ser do homem’ no pensamento moderno, a uma estrutura na qual as ideias intervenientes expressas pelos respectivos elementos de imagem, ocupam seus lugares em uma estrutura proposta.
O modo de ser do homem no pensamento moderno
“O modo de ser do homem,
tal como se constituiu no pensamento moderno,
permite-lhe desempenhar dois papéis:
está, ao mesmo tempo,
- no fundamento de todas as positividades,
presente, de uma forma que não se
pode sequer dizer privilegiada,
- no elemento das coisas empíricas.”

descontinuidade epistemológica ocorrida entre 1775 e 1825
Segue o texto formatado do tópico I. O triedro dos saberes; do Capítulo X – As ciências humanas
O modo de ser do homem, tal como se constituiu no pensamento moderno, permite-lhe desempenhar dois papéis:
está, ao mesmo tempo,
- no fundamento de todas as positividades,
presente, de uma forma que não se
pode sequer dizer privilegiada,
- no elemento das coisas empíricas.
Esse fato [o modo de ser do homem em sua constituição no pensamento moderno] – e não se trata aí da essência em geral do homem, mas pura e simplesmente desse a priori histórico que, desde o século XIX, serve de solo quase evidente ao nosso pensamento – esse fato é, sem dúvida, decisivo para o estatuto a ser dado às “ciências humanas”, a esse corpo de conhecimentos (mas mesmo esta palavra é talvez demasiado forte: digamos, para sermos mais neutros ainda, a esse conjunto de discursos) que toma por objeto o homem no que ele tem de empírico.
A primeira coisa a constatar é que as ciências humanas não receberam por herança um certo domínio já delineado, dimensionado talvez em seu conjunto, mas não-desbravado, que elas teriam por tarefa elaborar com conceitos enfim científicos e métodos positivos; o século XVIII não lhes transmitiu, sob o nome de homem ou de natureza humana, um espaço circunscrito exteriormente, mas ainda vazio, que elas tivessem, em seguida, a tarefa de cobrir e analisar.
O campo epistemológico que percorrem as ciências humanas não foi prescrito de antemão:
nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, qualquer que fosse, nenhuma observação do corpo humano, nenhuma análise da sensação, da imaginação ou das paixões, jamais encontrou, nos séculos XVII e XVIII, alguma coisa como o homem; pois o homem não existia (assim como a vida, a linguagem e o trabalho); e as ciências humanas não apareceram quando, sob o efeito de algum racionalismo premente, de algum problema científico
não-resolvido, de algum interesse prático, decidiu-se fazer passar o homem (por bem ou por mal, e com maior ou menor êxito) para o campo dos objetos científicos – em cujo número, talvez, não esteja ainda provado que seja possível incluí-lo de modo absoluto;
elas apareceram no dia em que
o homem se constituiu na cultura ocidental,
ao mesmo tempo como
- o que é necessário pensar
- e o que se deve saber.
Certamente, não resta dúvida de que a emergência histórica de cada uma das ciências humanas tenha ocorrido por ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de ordem teórica ou prática;
- por certo foram necessárias novas normas impostas pela sociedade industrial aos indivíduos para que, lentamente, no decurso do século XIX, a psicologia se constituísse como ciência;
- também foram necessárias, sem dúvida, as ameaças que, desde a Revolução, pesaram sobre os equilíbrios sociais e sobre aquele mesmo que instaurara a burguesia, para que aparecesse uma reflexão de tipo sociológico.
Mas se essas referências podem bem explicar por que é que foi realmente em tal circunstância determinada e para responder a tal questão precisa que essas ciências se articularam, sua possibilidade intrínseca, o fato nu de que, pela primeira vez, desde que existem seres humanos e que vivem em sociedade, o homem, isolado ou em grupo, se tenha tornado objeto de ciência – isso não pode ser considerado nem tratado como um fenômeno de opinião: é um acontecimento na ordem do saber.
E esse acontecimento produziu-se, por sua vez, numa redistribuição geral da epistémê: quando,
- abandonando o espaço da representação,
- os seres vivos alojaram-se na profundeza específica da vida,
- as riquezas no surto progressivo das formas da produção,
- as palavras no devir das linguagens.
Nessas condições, era necessário que o conhecimento do homem surgisse, com seu escopo científico, como contemporâneo e do mesmo veio que
- a biologia,
- a economia
- e a filologia,
de tal sorte que nele se viu, muito naturalmente, um dos mais decisivos progressos realizados, na história da cultura européia, pela racionalidade empírica.
Mas, como ao mesmo tempo a teoria geral da representação desaparecia e impunha-se, em contrapartida, a necessidade de interrogar o ser do homem como fundamento de todas as
positividades, não podia deixar de produzir-se um desequilíbrio:
o homem tornava-se aquilo a partir do qual todo conhecimento podia ser constituído em sua evidência imediata e não-problematizada;
tornava-se, a fortiori, aquilo que autoriza o questionamento de todo conhecimento do homem.
Daí esta dupla e inevitável contestação:
- a que institui o perpétuo debate entre as ciências do homem e as ciências propriamente ditas, tendo as primeiras a pretensão invencível de fundar as segundas, que, sem cessar são obrigadas a buscar seu próprio fundamento, a justificação de seu método e a purificação de sua história, contra o “psicologismo”, contra o “sociologismo”, contra o “historicismo”;
- e a que institui o perpétuo debate entre a filosofia, que objeta às ciências humanas a ingenuidade com a qual tentam fundar-se a si mesmas, e essas ciências humanas, que reivindicam como seu objeto próprio o que teria constituído outrora o domínio da filosofia.
(os três eixos e as três faces do triedro dos saberes)

Interrogado a esse nível arqueológico, o campo da epistémê moderna não se ordena conforme o ideal de uma matematização perfeita e não desenrola, a partir da pureza formal, uma longa seqüência de conhecimentos descendentes, cada vez mais carregados de empiricidade. Antes, deve-se representar o domínio da epistémê moderna com um espaço volumoso e aberto segundo três dimensões.
- Eixo E3: Numa delas, situar-se-iam as ciências matemáticas e físicas, para as quais a ordem é sempre um encadeamento dedutivo e linear de proposições
evidentes ou verificadas; - Eixo E1: haveria, em outra dimensão, ciências (como as
da linguagem, da vida, da produção e da distribuição das riquezas) que procedem ao estabelecimento de relações entre elementos descontínuos mas análogos, de sorte que elas pudessem estabelecer entre eles relações causais e constantes de estrutura.
Essas duas primeiras dimensões definem entre si
- Face F1: um plano comum: aquele que pode aparecer, conforme o sentido em que é percorrido, como campo de aplicação das matemáticas a essas ciências empíricas, ou domínio do matematizável na linguistica, na biologia e na economia.
Quanto à terceira dimensão,
- Eixo E2: seria a da reflexão filosófica, que se desenvolve como pensamento do Mesmo;
- Face F2: com [E1 – o eixo epistemológico fundamental] a dimensão da linguística, da biologia e da economia, ela [E2 – a reflexão filosófica] delineia um plano comum: lá podem aparecer, e efetivamente apareceram, as diversas filosofias da vida, do homem alienado, das formas simbólicas (quando se transpõem para a filosofia os conceitos e os problemas que nasceram nos diferentes domínios empíricos); mas, lá também apareceram, se se interrogar de um ponto de vista radicalmente filosófico o fundamento dessas empiricidades, ontologias regionais, que tentam definir o que são, em seu ser próprio, a vida, o trabalho e a linguagem;
- Face F3: enfim, [o eixo E2] a dimensão filosófica define com [o eixo E3] a das disciplinas matemáticas um plano comum [a face F1]: o da formalização do pensamento.
(o espaço interior do triedro)
Desse triedro epistemológico,
as ciências humanas são excluídas,
no sentido ao menos de que
não podem ser encontradas
em nenhuma das dimensões,
nem à superfície de nenhum dos planos
assim delineados.

Mas, pode-se também dizer que elas são incluídas por ele, pois é no interstício desses saberes, mais exatamente no volume definido por suas três dimensões, que elas encontram seu lugar.
Essa situação (menor num sentido, privilegiada noutro) coloca-as em relação com todas as outras formas de saber:
- têm o projeto, mais ou menos protelado, porém constante, de se conferirem ou, em todo o caso, de utilizarem, num nível ou noutro, uma formalização matemática;
- procedem segundo modelos ou conceitos tomados à biologia, à economia e às ciências da linguagem;
- endereçam-se, enfim, a esse modo de ser do homem que a filosofia busca pensar ao nível da finitude radical, enquanto elas pretendem percorrê-lo em suas manifestações empíricas.
É talvez essa repartição nebulosa num espaço de três dimensões que toma as ciências humanas tão difíceis de situar, que confere sua irredutível precariedade à localização destas no domínio epistemológico, que as faz aparecer ao mesmo tempo como perigosas e em perigo.
Perigosas, pois representam para todos os outros saberes como que um risco permanente: por certo, nem as ciências dedutivas, nem as ciências empíricas, nem a reflexão filosófica, desde que permaneçam na sua dimensão própria, arriscam-se a “passar” para as ciências humanas ou encarregar-se de sua impureza; sabe-se, porém, que dificuldades por vezes encontra o estabelecimento desses planos intermediários que unem, umas às outras, as três dimensões do espaço epistemológico; é que o menor desvio em relação a esses planos rigorosos faz cair o pensamento no domínio investido pelas ciências humanas;
daí o perigo
- do “psicologismo”,
- ou do “sociologismo” –
do que se poderia chamar, numa palavra,
- “antropologismo”
– que se torna ameaçador desde que, por exemplo, não se reflita corretamente sobre as relações entre o pensamento e a formalização, ou desde que não se analisem convenientemente os modos de ser da vida, do trabalho e da linguagem.
A “antropologização” é, em nossos dias, o grande perigo interior do saber. Facilmente se acredita que o homem liberou-se de si mesmo, desde que descobriu que não estava nem no centro da criação, nem no núcleo do espaço, nem mesmo talvez no cume e no fim derradeiro da vida; mas, se o homem não é mais soberano no reino do mundo, se já não reina no âmago do ser, as “ciências humanas” são perigosos intermediários no espaço do saber.
Na verdade, porém, essa postura mesma as condena a uma instabilidade essencial. O que explica a dificuldade das “ciências humanas”, sua precariedade, sua incerteza como ciências, sua perigosa familiaridade com a filosofia, seu apoio mal definido sobre outros domínios do saber, seu caráter sempre secundário e derivado, como também sua pretensão ao universal,
- não é, como freqüentemente se diz, a extrema densidade de seu objeto; não é o estatuto metafisico ou a indestrutível transcendência desse homem de que elas falam,
- mas, antes, a complexidade da configuração epistemológica em que se acham colocadas, sua relação constante com as três dimensões que lhes confere seu espaço.
As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas
Capítulo X – As ciências humanas;
topico I – O triedro dos saberes