Espírito com que lhes escrevo

Escrevo-lhes tendo em mente

  • ‘A sociedade dos poetas mortos’, duas cenas desse filme que gostaria que revissem.
  •  ‘O louco e o poeta’, e por falar em poetas – os mortos e os vivos, acho importante lembrar este  excerto encontrado no ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’, de Michel Foucault, que em se tratando desse autor, também vale a pena reler para criar o clima receptivo para o que vem a seguir.

O que se segue consiste em uma relação entre:

  1. o meu entendimento pessoal do pensamento de Michel Foucault no magistral livro ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’; e
  2. uma coleção de modelos de operações e de organizações – alguns antológicos – no campo da produção, da gestão da produção e modelos da economia financeira.

Entre a) o meu entendimento pessoal do pensamento de Foucault;  e b) a coleção de modelos, isto é, o pensamento de projetistas de teorias, modelos e sistemas tal como posto em prática nos chamados domínios ‘técnicos’; a relação é feita por meio de um critério composto de elementos – características de características, ou características de segunda ordem -, dos modelos dessa coleção; são os seguintes os elementos integrantes desse critério: referencial, princípios organizadores do pensamento e métodos, para cada modelo; e estes elementos estão discriminados por Foucault para o pensamento em cada período histórico nos últimos dois séculos em nossa cultura. Funcionam como denominadores comuns entre modelos ‘da mesma idade e mesma geografia’, e o melhor, entre diferentes áreas do conhecimento, daí seu potencial integrador.

Esse critério, com esses elementos componentes, não é único, mas permite discernir, como diz Foucault ‘o modo de ser fundamental das empiricidades’ em cada período histórico; e lembremos que esse conceito, ‘modo de ser fundamental das empiricidades’, isto é, ‘aquilo que permite que elas sejam afirmadas, postas, dispostas, e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis’ As palavras e as coisas; Cap 7. Os limites da representação; tópico I – A idade da história; é o elemento ordenador da História a partir de um certo evento– uma descontinuidade epistemológica em nossa cultura, escolhido em substituição a outro conceito de história antes entendida como a sucessão de fatos tais como se constituíram.

Considero então que diante da necessidade de conseguir  um alinhamento do ponto de vista do pensamento filosófico entre, de um lado, desenvolvimentos feitos em áreas como a economia, a análise e gestão da produção, a sociologia e a psicanálise, entre outras; e de outro lado, o pensamento de filósofos em cada período histórico ao longo do tempo nos últimos dois séculos, esse critério de identificação e distinção pode ajudar bastante.

Veja, como evidência dessa necessidade de alinhamento, uma Cronologia da descontinuidade epistemológica situada por Michel Foucault entre 1775 e 1825, evento que ele chama de ‘evento fundador da nossa modernidade no pensamento’, e que tem os conceitos de história diferentes antes e depois dele. A cronologia desse evento mostra períodos em que as configurações do pensamento em nossa cultura mudaram fortemente.

Antes de mais argumentos acho que é interessante descobrir, mais sinteticamente, o que é que Foucault via de diferente entre as teorias, modelos e sistemas ao longo do tempo, e que o levava a considerar alguns tão diferentes dos outros. Uma boa pista para entender isso é Os dois obstáculos ou as duas pedras de tropeço encontrados por Michel Foucault em seu trabalho no ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’, nas palavras dele mesmo.

Em suma ele via só duas coisas: uma impossibilidade; e uma obrigação a ser cumprida.

  • A impossibilidade era a de certas configurações do pensamento, de serem incapazes de fundarem as sínteses (dos objetos do pensamento em suas operações) no espaço da representação;
    • o que nos leva a identificar modelos com essa impossibilidade;
    • e modelos sem essa impossibilidade, ou sim capazes de fundar as sínteses, etc. etc.
  • E a obrigação que ele via, corresponde ao portentoso passo adiante dado por ele, e que coroa toda a arqueologia das ciências humanas feita no ‘As palavras e as coisas’, descortinando para nós todo o espaço, o habitat das ciências humanas: a obrigação consistia em
    • abrir o campo transcendental da subjetividade,
    • e constituir, para além do objeto, os quase-transcendentais Vida, Trabalho e Linguagem.

Assim, formando um trio: Vida, Trabalho e Linguagem – compondo uma região epistemológica fundamental. Diferente de Vida = [Desejo, Trabalho e Linguagem].

Essa impossibilidade e o cumprimento dessa obrigação já lançam alguma luz sobre teorias, modelos e sistemas porque permitem agrupá-los em três segmentos:

  • segmento AQUÉM do objeto – modelos sem a possibilidade de fundar as sínteses … ;
  • segmento DIANTE do objeto – modelos agora com a possibilidade de fundar as sínteses … ;
  • e para ALÉM do objeto – modelos construídos a partir dos quase-transcendentais Vida, Trabalho e Linguagem já constituídos, ou modelos das ciências humanas.

E especificamente sobre a noção de Riqueza

“Em contrapartida, existe, nos séculos XVII e XVIII,
uma noção que nos permaneceu familiar,
embora tenha perdido para nós sua precisão essencial. 
Nem é de “noção” que se deveria falar a seu respeito,
pois não tem lugar no interior de um jogo de conceitos econômicos
que ela deslocaria levemente, confiscando um pouco de seu sentido ou corroendo sua extensão.  Trata-se antes de um domínio geral:
de uma camada bastante coerente e muito bem estratificada,
que compreende e aloja, como tantos objetos parciais, as noções
de valor, de preço, de comércio, de circulação, de renda, de interesse
Esse domínio, solo e objeto da “economia” na idade clássica, é o da riqueza. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. 6 – Trocar; tópico I – A análise das riquezas

O anacronismo muito comum em economistas, filósofos, historiadores das ciências, sintonizados com o liberalismo clássico e em suas variantes (Paulo Guedes) (Eduardo Moreira, Mônica De Bolle etc.) tão difundidos atualmente.

“Inútil colocar-lhe questões vindas de uma economia de tipo diferente,
organizada, por exemplo, em torno da produção ou do trabalho;
inútil igualmente analisar seus diversos conceitos
(mesmo e sobretudo se seus nomes em seguida se perpetuaram,
com alguma analogia de sentido),
sem levar em conta o sistema em que assumem sua positividade.” 
As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas;
Cap. 6 – Trocar; tópico I – A análise das riquezas

Sobre esses espaços do saber em que as mudanças no ‘modo de ser fundamental das empiricidades’ se disseminaram, segundo o pensamento de Michel Foucault, o ‘As palavras e as coisas’ o livro descreve dois espaços gerais do saber, entendendo o espaço do saber aberto em nossa cultura depois da descontinuidade epistemológica com uma lógica: o bicho homem para que se constitua em humano precisa haver-se com a vida, o trabalho e a linguagem; assim, as ciências da Vida (Biologia) do Trabalho (Economia) e da Linguagem (Filologia) compõem a região epistemológica fundamental. E nesse percurso em direção à humanização, ele pode lançar mão dos conhecimentos em todas as outras áreas, formando o que Foucault chama de Triedro dos saberes. Veja As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; Cap. X – As ciências humanas; tópico I

Veja Os dois espaços gerais do saber em cada segmento do espectro de modelos

Voltando ao vídeo 254, a façanha de Lacan na reformulação da psicanálise é ambientada ‘na linguagem’ e com entidades afeitas à fala. 

Michel Foucault mostra como isso funciona mostrando As duas possibilidades de inserção do ponto de início da leitura do fenômeno ‘operações’ na análise do que sejam ‘operações de troca’ e valor; com exemplos em imagens, figuras feitas para modelos muito usados.

 Eu acredito que essas coisas ditas por Michel Foucault podem e precisam ser cotejadas com teorias, modelos e sistemas existentes em nosso meio e em várias áreas, muito práticos e alguns largamente utilizados, (basta ter critério, – ou olhos devidamente armados -, para ver claramente) principalmente nos domínios da produção, da economia e também no campo dos levantamentos contábeis do setor econômico-financeiro.

Essa possibilidade de relacionamento com modelos muito usados é o que torna tais afirmativas feitas por Foucault independentes do que ele próprio tenha ou não dito.

O Projeto Formulador é um estudo que pretende justamente esse cotejamento, para identificar essas relações entre o que pensam os muitos filósofos que povoam o ‘As palavras e as coisas’ e os modelos descritivos da produção, ou os sistemas de gestão de operações ou projeto de organizações empresariais, como exemplos.

Por essas razões o que se segue pode valer a pena de ser considerado.

Esse paralelo entre o pensamento de filósofos e o de projetistas de modelos descritivos da produção ou de modelos de gestão, toma características gerais como referencial, princípios organizadores e métodos de configurações diferentes de pensamento e encontra esses mesmos elementos nos modelos de operações e de organizações antológicos existentes e muito usados atualmente.

 e com isso a possibilidade do uso dessa galeria de modelos reais relacionados com o pensamento de filósofos para promover um alinhamento filosófico que ajude a deslindar coisas complicadas como são teorias, modelos e sistemas sócio-político-econômicos como são os associados ao liberalismo e suas variantes.

Eu vejo o ‘As palavras e as coisas’ como que uma cartilha que alfabetiza quem pretende ler e entender teorias, modelos e sistemas principalmente no campo das ciências humanas. Assim, considero que em uma exposição sobre teorias, modelos e sistemas relacionados ao liberalismo e neoliberalismo, como essa que é feita no vídeo Falando nisso 254, a referência bibliográfica do ‘As palavras e as coisas’ se impõe, mormente quando o ‘Nascimento da biopolítica’, do mesmo autor é citado.

Biopolítica pertence à classe especial de saberes denominados ‘ciências humanas’ e podemos adotar duas estratégias para desvendá-las:

  1. aprender desde uma cartilha como ‘As palavras e as coisas’ como se constituiu essa classe de saberes em nossa cultura, como funciona seu modelo constituinte baseado nos pares constituintes das ciências da Vida (Biologia) [função-norma], do Trabalho (Economia) [conflito-regra] e da Linguagem (Filologia) [significação-sistema] e então abordar modelos nesse campo já formulados e configurados, e pior, em uso.
  2. partir diretamente, com sem armas e sem bagagem, para a análise de modelos altamente complicados como são os das ciências humanas, tomando-os já formulados e configurados, e em plena operação, e sem termos como suporte ao nosso pensamento e capacidade de análise, os ensinamentos da cartilha de alfabetização para leitores desse tipo de produções do pensamento.

Pois a meu julgamento no vídeo 254 adota-se a segunda estratégia.

E o que se segue tem o objetivo de mostrar aquilo que podemos ganhar, nós todos, se aquiescermos em aprender um pouco com Michel Foucault nesse grande livro tão mal compreendido.