Capítulo VII - Os limites da representação; tópico VI. As sínteses objetivas
Daí uma série quase infinita de consequências. De consequências, em todo o caso, ilimitadas, já que o nosso pensamento hoje pertence ainda à sua dinastia.
Em primeiro plano, é preciso, sem dúvida, colocar a emergência simultânea de um tema transcendental e de campos empíricos novos – ou pelo menos distribuídos e fundados de maneira nova.
Viu-se como, no século XVII, o aparecimento da máthêsis como ciência geral da ordem não só tivera um papel fundador nas disciplinas matemáticas como também fora correlativo da formação de domínios diversos e puramente empíricos como a gramática geral, a história natural e a análise das riquezas; estes não foram construídos segundo um “modelo” que lhes teria prescrito a matematização ou a mecanização da natureza; constituíram-se e dispuseram-se sobre o fundo de uma possibilidade geral: aquela que permitia estabelecer entre as representações um quadro ordenado das identidades e das diferenças.
É a dissolução, nos últimos anos do século XVIII, desse campo homogêneo de representações ordenáveis, que faz aparecer, correlativamente, duas formas novas de pensamentos.
Uma interroga as condições de uma relação entre as representações do lado do que as torna em geral possíveis: põe assim a descoberto um campo transcendental onde
- o sujeito,
que jamais é dado à experiência (pois não é empírico),
mas que é infinito (pois não tem intuição intelectual),
- determina na sua relação com um objeto = x todas as condições formais da experiência em geral;
é a análise do sujeito transcendental que extrai o fundamento de uma síntese possível entre as representações.
Em face dessa abertura para o transcendental, e simetricamente a ela, uma outra forma de pensamento interroga as condições de uma relação entre as representações do lado do ser mesmo que aí se acha representado:
o que, no horizonte de todas as representações atuais, se indica por si mesmo como o fundamento da unidade delas são esses objetos jamais objetiváveis, essas representações jamais inteiramente representáveis, essas visibilidades ao mesmo tempo manifestas e invisíveis, essas realidades que estão em recuo na medida mesma em que são fundadoras daquilo que se oferece e se adianta até nós:
- a potência de trabalho,
- a força da vida,
- o poder de falar.
É a partir dessas formas que rondam nos limites exteriores de nossa experiência
- que o valor das coisas,
- a organização dos seres vivos,
- a estrutura gramatical e a afinidade histórica das línguas
vêm até nossas representações e solicitam de nós a tarefa talvez infinita do conhecimento.
Buscam-se assim
- as condições de possibilidade da experiência
- nas condições de possibilidade do objeto e de sua existência,
ao passo que, na reflexão transcendental,
- identificam-se as condições de possibilidade dos objetos da experiência
- às condições de possibilidade da própria experiência.
A positividade nova das ciências da vida, da linguagem e da economia está em correspondência com a instauração de uma filosofia transcendental.
O trabalho, a vida e a linguagem aparecem como tantos “transcendentais”, que tornam possível o conhecimento objetivo dos seres vivos, das leis da produção, das formas da linguagem.
Em seu ser, estão fora do conhecimento, mas são, por isso mesmo, condições de conhecimentos; correspondem à descoberta, por Kant, de um campo transcendental e, no entanto, dele diferem em dois pontos essenciais:
- alojam-se do lado do objeto e, de certo modo, além dele; como a Ideia na Dialética transcendental, totalizam os fenômenos e dizem a coerência a priori das multiplicidades empíricas;
- fundam-nas, porém, num ser cuja realidade enigmática constitui, antes de todo conhecimento, a ordem e o liame daquilo que se presta a conhecer;
- ademais, eles concernem
- ao domínio das verdades a posteriori e aos princípios de sua síntese –
- e não à síntese a priori de toda experiência possível.
A primeira diferença (o fato de estarem os transcendentais alojados do lado do objeto) explica o nascimento dessas metafisicas que, apesar de sua cronologia pós-kantiana, aparecem como “pré-críticas”:
com efeito, elas se desviam da análise das condições do conhecimento tais como se podem desvelar no nível da subjetividade transcendental; mas essas metafisicas se desenvolvem a partir de transcendentais objetivos (a Palavra de Deus, a Vontade, a Vida), que só são possíveis na medida em que o domínio da representação se acha previamente limitado; elas têm, portanto, o mesmo solo arqueológico que a própria Crítica.
A segunda diferença (o fato de que esses transcendentais concernem às sínteses a posteriori) explica o aparecimento de um “positivismo”:
é dada à experiência toda uma camada de fenômenos cuja racionalidade e cujo encadeamento repousam sobre um fundamento objetivo que não é possível trazer à luz; podem-se conhecer não as substâncias, mas os fenômenos; não as essências, mas as leis; não os seres, mas suas regularidades.
Instaura-se assim, a partir da crítica – ou, antes, a partir desse desnível do ser em relação à representação, de que o kantismo é a primeira constatação filosófica – uma correlação fundamental:
- de um lado, metafisicas do objeto, mais exatamente, metafisicas desse fundo jamais objetivável donde vêm os objetos ao nosso conhecimento superficial;
- e, do outro, filosofias que se dão por tarefa unicamente a observação daquilo mesmo que é dado a um conhecimento positivo.
Vê-se de que modo os dois termos dessa oposição se dão apoio e se reforçam um ao outro;
- é no tesouro dos conhecimentos positivos (e sobretudo daqueles que a biologia, a economia ou a filologia podem liberar)
- que as metafisicas dos “fundos” ou dos “transcendentais” objetivos encontrarão seu ponto de investida;
e, inversamente,
- é na divisão entre o fundo incognoscível e a racionalidade do cognoscível
- que os positivismos encontrarão sua justificação.
O triângulo crítica-positivismo-metafisica do objeto é constitutivo do pensamento europeu desde o começo do século XIX até Bergson.
Uma tal organização está ligada, na sua possibilidade arqueológica, à emergência desses campos empíricos de que, doravante, a pura e simples análise interna da representação não pode mais explicar.
Ela é, portanto, correlativa de um certo número de disposições próprias à epistémê moderna. Antes de mais, vem à luz um tema que até então permanecera informulado, e, a bem dizer, inexistente.
Pode parecer estranho que na época clássica não se tenha tentado matematizar as ciências de observação, ou os conhecimentos gramaticais, ou a experiência econômica. Como se a matematização galileana da natureza e o fundamento da mecânica fossem por si sós suficientes para cumprir o projeto de uma máthêsis.
Não há nisso nada de paradoxal: a análise das representações segundo suas identidades e suas diferenças, sua ordenação em quadros permanentes situavam, de pleno direito, as ciências do qualitativo no campo de uma máthêsis universal.
No fim do século XVIII, produz-se uma divisão fundamental e nova:
- agora que o liame das representações já não se estabelece no movimento mesmo que as decompõe,
- as disciplinas analíticas acham-se epistemologicamente distintas daquelas que devem recorrer à síntese.
Ter-se-á, pois,
- um campo de ciências a priori, de ciências formais e puras, de ciências dedutivas que são da alçada da lógica e das matemáticas:
- por outro lado, vê-se destacar um domínio de ciências a posteriori, de ciências empíricas que só utilizam as formas dedutivas por fragmentos e em regiões estreitamente localizadas.
Ora, essa divisão tem por consequência a preocupação epistemológica de reencontrar em outro nível a unidade que se perdera com a dissociação da máthêsis e da ciência universal da ordem.
Daí certo número de esforços que caracterizam a reflexão moderna sobre as ciências:
- a classificação dos domínios do saber a partir das matemáticas, e a hierarquia que se instaura para se dirigir progressivamente ao mais complexo e ao menos exato;
- a reflexão sobre os métodos empíricos da indução e o esforço para, ao mesmo tempo,
- fundá-los filosoficamente
- e justificá-los de um ponto de vista formal;
- a tentativa para purificar, formalizar e talvez matematizar os domínios da economia, da biologia e finalmente da própria linguística.
Contrapondo-se a essas tentativas para reconstituir um campo epistemológico unitário, encontra-se, em intervalos regulares, a afirmação de uma impossibilidade:
esta seria devida
- quer a uma especificidade irredutível da vida (que se tenta cingir sobretudo no começo do século XIX),
- quer ao caráter singular das ciências humanas que resistiriam a toda redução metodológica (resistência essa que se tenta definir e medir sobretudo na segunda metade do século XIX).
Sem dúvida, nessa dupla afirmação,
alternada ou simultânea,
de poder e de não poder
formalizar o empírico,
é preciso reconhecer o traço
desse acontecimento profundo que,
por volta do fim do século XVIII,
apartou do espaço das representações
a possibilidade da síntese.
É esse acontecimento que coloca a formalização, ou a matematização, no cerne de todo projeto científico moderno; é ele igualmente que explica por que toda matematização apressada ou toda formalização ingênua do empírico torna a feição de um dogmatismo “pré-crítico”, e ressoa no pensamento como um retomo à insipidez da Ideologia.
Seria preciso evocar ainda um segundo caráter da epistémê moderna.
Durante a idade clássica, a relação constante e fundamental do saber, mesmo empírico, com uma máthêsis universal, justificava o projeto, incessantemente retomado sob formas diversas, de um corpus enfim unificado dos conhecimentos; esse projeto tomou alternativamente, mas sem que seu fundamento tenha sido modificado, a feição
- quer de uma ciência geral do movimento,
- quer de uma característica universal,
- quer de uma língua refletida e reconstituída em todos os seus valores de análise e em todas as suas possibilidades de sintaxe,
- quer, finalmente, de uma Enciclopédia alfabética ou analítica do saber;
pouco importa que essas tentativas não tenham sido levadas a cabo ou que não tenham cumprido inteiramente o desígnio que as fizera nascer: manifestavam todas, na superfície visível dos acontecimentos ou dos textos, a profunda unidade que a idade clássica instaurara ao dar como suporte arqueológico ao saber a análise das identidades e das diferenças e a possibilidade universal da ordenação.
De sorte que Descartes, Leibniz, Diderot e D’Alembert, naquilo que se pode chamar seu fracasso, em sua obra suspensa ou desviada, permaneciam o mais próximo possível do que era constitutivo do pensamento clássico.
A partir do século XIX, a unidade da máthêsis é rompida.
Duas vezes rompida:
- por um lado, segundo a linha que divide as formas puras da análise e as leis da síntese,
- por outro lado, segundo a linha que separa, quando se trata de fundar as sínteses,
- a subjetividade transcendental
- e o modo de ser dos objetos.
Essas duas formas de ruptura fazem nascer duas séries de tentativas em que certo intuito de universalidade parece fazer eco aos empreendimentos cartesiano e leibniziano.
Porém, observando-se um pouco mais de perto, a unificação do campo do conhecimento não tem e não pode ter, no século XIX, nem as mesmas formas, nem as mesmas pretensões, nem os mesmos fundamentos que na época clássica.
Na época de Descartes ou de Leibniz, a transparência recíproca entre o saber e a filosofia era total, a ponto de a universalização do saber num pensamento filosófico não exigir um modo de reflexão específica.
A partir de Kant, o problema é inteiramente diverso; o saber não pode mais desenvolver-se sobre o fundo unificado e unificador de uma máthêsis.
Por um lado, coloca-se o problema das relações entre o campo formal e o campo transcendental (e nesse nível todos os conteúdos empíricos do saber são postos entre parênteses e permanecem em suspenso no que diz respeito a toda validade);
e, por outro lado, coloca-se o problema das relações entre o domínio da empiricidade e o fundamento transcendental do conhecimento (então, a ordem pura do formal é posta de lado como não-pertinente para explicar essa região onde se funda toda experiência, mesmo aquela das formas puras do pensamento).
Mas, num caso como noutro, o pensamento filosófico da universalidade não está no mesmo nível que o campo do saber real; constitui-se,
- quer como uma reflexão pura suscetível de fundar,
- quer como uma retomada capaz de desvelar:
A primeira forma de filosofia manifestou-se de início no empreendimento fichtiano em que a totalidade do domínio transcendental é geneticamente deduzida das leis puras, universais e vazias do pensamento: por aí se abriu um campo de pesquisas por onde se tenta,
- quer reduzir toda reflexão transcendental à análise dos formalismos,
- quer descobrir na subjetividade transcendental o solo de possibilidade de todo formalismo.
Quanto à outra abertura filosófica, apareceu primeiramente com a fenomenologia hegeliana, quando a totalidade do domínio empírico foi retomada no interior de uma consciência que se revela a si própria como espírito, isto é, como campo ao mesmo tempo empírico e transcendental.
Vê-se de que modo a tarefa fenomenológica, em que Husserl bem mais tarde se fixará, está ligada, no âmago de suas possibilidades e de suas impossibilidades, ao destino da filosofia ocidental tal como ele se estabeleceu desde o século XIX.
Com efeito, ela tenta assentar os direitos e os limites de uma lógica formal numa reflexão de tipo transcendental e, por outro lado, ligar a subjetividade transcendental ao horizonte implícito dos conteúdos empíricos que só ela tem possibilidade de constituir, manter e abrir mediante explicitações infinitas.
Mas talvez não escape ela ao perigo que ameaça, antes mesmo da fenomenologia, todo empreendimento dialético, e a faz, queira ou não, resvalar numa antropologia.
Sem dúvida, não é possível conferir valor transcendental aos conteúdos empíricos nem deslocá-los para o lado de uma subjetividade constituinte, sem dar lugar, ao menos silenciosamente, a uma antropologia, isto é, a um modo de pensamento em que os limites de direito do conhecimento (e, conseqüentemente, de todo saber empírico) são ao mesmo tempo as formas concretas da existência, tais como elas se dão precisamente nesse mesmo saber empírico.
As conseqüências mais longínquas e, para nós, as mais difíceis de circunscrever, do acontecimento fundamental que sobreveio à epistémê ocidental por volta do fim do século XVllI, podem assim se resumir:
- negativamente, o domínio das formas puras do conhecimento se isola, assumindo ao mesmo tempo autonomia e soberania em relação a todo saber empírico, fazendo nascer e renascer indefinidamente o projeto de formalizar o concreto e de constituir, a despeito de tudo, ciências puras;
- positivamente, os domínios empíricos se ligam a reflexões sobre a subjetividade, o ser humano e a finitude, assumindo valor e função de filosofia, tanto quanto de redução da filosofia ou de contrafilosofia.